Inelegível não é o contrário de elegível (!) (?)
É muito complicado tentar enquadrar o direito eleitoral dogmaticamente. E, mesmo quando isso ocorre, parece estranho, dissonante. A lógica comum recomendaria acreditar, pelo menos de início, que alguém que não seja considerado elegível é alguém, pois, inelegível. Ora, pois...
A doutrina tradicional e vigente na jurisprudência do TSE há muito tempo permite chegar a conclusões diversas, ou seja, que alguém não elegível não seja inelegível.
Confuso? Não parece estranho? Mas não é tão difícil de entender. E quem ensina é Moreira Alves, em um texto de 1976. O artigo foi publicado no livro "Estudos de Direito Público em Homenagem a Aliomar Baleeiro", Ed. UnB, 1976. Moreira Alves, que viria a comandar a jurisprudência do STF e do TSE, maneja nesse breve artigo uma lógica jurídica formal (antecedentes e consequentes) construída também com fortes argumentos de autoridade, para distinguir:
pressupostos de elegibilidade de inelegibilidades ou impedimentos à elegibilidade (!)
Reparem que a matriz normativa era a da Constituição de 69. Curiosamente, o quadro jurídico atual pouco se alterou, como se verá.
"Pressupostos de elegibilidade são requisitos que se devem preencher para que se possa concorrer a eleições. Assim, estar no gozo de direitos políticos, ser alistado como eleitor, estar filiado a partido político, ter sido escolhido como candidato do Partido a que se acha filiado, haver sido registrado, pela Justiça Eleitoral, como candidato por esse Partido.
Já as inelegibilidades são impedimentos que, se não afastados por quem preencha os pressupostos de elegibilidade, lhe obstam concorrer a eleições, ou - se supervenientes ao registro ou se de natureza constitucional - servem de fundamento à impugnação de sua diplomação, se eleito. Não podem eleger-se, por exemplo (que exemplo!), os que participam de organização cujo programa ou ação contraria o regime democrático; os declarados indignos do oficialato ou com ele incompatíveis; os que tiverem seus bens confiscados por enriquecimento ilícito.
Portanto, para que alguém possa ser eleito precisa de preencher pressupostos de elegibilidade (requisito positivo) e não incidir em impedimentos (requisito negativo). Quem não reunir essas duas espécies de requisitos - o positivo (preenchimento de pressupostos) e o negativo (não incidência em impedimentos) - não pode concorrer a cargo eletivo."
Bastante enfático, não?
Mais adiante, Moreira Alves dá outro exemplo, inclusive procurando corrigir uma falha do próprio texto da Constituição, falha essa - considerado o acerto da tese - que se repetiu no texto atual.
Assim:
"Tendo em vista, porém, que o resultado da inocorrência de qualquer desses dois requisitos é o mesmo (!?) - a não elegibilidade - o substantivo inelegibilidade (e o mesmo sucede com o adjetivo inelegível) é geralmente empregado para significar tanto os casos de ausência de pressupostos de elegibilidade quanto os impedimentos que obstam à elegibilidade. No próprio texto constitucional há exemplo desse uso. Com efeito, o alistamento como eleitor é pressuposto de elegibilidade (requisito positivo), e, não, impedimento que obsta à elegibilidade (requisito negativo, caso de inelegibilidade propriamente dita). Apesar disso, o art. 150 da Emenda Constitucional 1/69 preceitua: "São inelegíveis os inalistáveis." Já no artigo seguinte - 151 - alude aos impedimentos que obstam à elegibilidade, e apenas para esses axige a Constituição Federal Lei Complementar, para que, com a observância de tais impedimentos, se preservem o regime democrático, a probidade administrativa, a normalidade e legitimidade das eleições contra certas influências e a moralidade para o exercício do mandato."
Mas, há mais. Moreira Alves ainda está construindo a premissa de seu discurso. Concluirá, mais adiante, pela constitucionalidade da exigência contida na lei ordinária (L. 5.682/71) do prazo de dois anos de filiação partidária prévia para se possa concorrer a eleições. A distinção entre os institutos jurídicos é a premissa de seu discurso dedutivo (decisório).
Como hoje, a importância dessa distinção decorre de uma circunstância formal, mas dotada de um grande peso político, a exigência do rito e do quórum qualificado para se aprovar leis complementares sobre inelegibilidades, o que não se exige para as condições de elegibilidade.
"Do exame do art. 151 - que é o que exige lei complementar para o estabelecimento de casos de inelegibilidade propriamente dita, verifica-se que, aí, o termo inelegibilidade não é empregado para traduzir ausência de pressuposto de elegibilidade (requisito positivo), mas, sim, impedimentos que obstam à elegibilidade (requsito negativo), tanto que os objetivos a que tem de visar essa Lei Complementar não são alcançáveis com os pressupostos de elegibilidade. De feito, para que se preservem o regime democrático (?), a normalidade e legitimidade de eleições contra certas influências (?!), ou a moralidade para o exercício do mandato, não há por que se exijam os pressupostos de elegibilidade: gozo de direitos políticos (?), alistamento como eleitor, filiação a Partido Político, registro de candidatura."
A exclamação e as interrogações são minhas, né. A exclamação vai para a imprecisão das certas influências, as interrogações... Ora, é ou não dissonante falar em manutenção do regime democrático em 1976?
Mas, o discurso de Moreira Alves é atemporal, formal, abstrato, cabe perfeitamente hoje. É um misto de formalismo kelseneano sobre uma imanência tímida, mas presente, dos conceitos. Essa ambiguidade, aliás, é marca da cultura jurídica, não apenas em Direito Eleitoral que, sin embargo, é pródigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário