Fundamentos
Há, entre os princípios jurídicos, aqueles cuja função imediata não é a de fundar premissas decisórias no contexto de uma disputa judicial, embora possam também servir para tal, mas dar base, fundamento para todo o processo regulado pelo Direito, em nosso caso, pelo direito eleitoral.
1 - Para começar, o princípio democrático: a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (art. 14, caput, CF)
Pode, no entanto, haver eleições sem democracia - e aqui nem se fala em democracia social -, quando aquelas deixam de respeitar a cláusula free and fair elections, isto é, quando as fraudes e a violência impedem a liberdade de escolha dos cidadãos eleitores.
É que o conceito mínimo de democracia política pressupõe, como condição básica, não apenas a realização de eleições, mas de eleições em que a participação popular seja a mais ampla possível e em que o voto seja sigiloso e livre de coações físicas ou de qualquer outro constrangimento, isto é, eleições em que seja, de fato, garantida a liberdade de escolha. A ocorrência desses defeitos ou vícios eleitorais (restrições ao direito de votar, violência, manipulação de resultados, aliciamento de eleitores, etc.) produziu no Brasil regimes bem mais oligárquicos do que propriamente democráticos.
2 - A transparência no exercício da política e a igualdade de todos perante o poder são os corolários principais do princípio republicano. São, portanto, pedras angulares do direito eleitoral, que deve reprimir os privilégios e os abusos de poder praticados em desfavor da igualdade entre os concorrentes que, em muitos casos, ocorre com o apoio ilícito da "máquina" do Estado.
Guiados pelo princípio republicano estão o processo de prestação de contas eleitorais, as vedações impostas aos agentes públicos em época de campanha eleitoral e parte do regime das inelegibilidades (impedimentos), principalmente aquelas relacionadas ao parentesco e ao exercício de cargo público durante o processo eleitoral.
- Art. 14, § 7º, CF - São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.
- "A evolução do Direito Eleitoral brasileiro, no campo das inelegibilidades, girou durante décadas em torno do princípio basilar da vedação de reeleição para o período imediato dos titulares do Poder Executivo: regra introduzida, como única previsão constitucional de inelegibilidade, na primeira Carta Política da República (Constituição 1891, art. 47, § 4º), a proibição se manteve incólume ao advento dos textos posteriores, incluídos os que regeram as fases de mais acendrado autoritarismo (assim, na Carta de 1937, os arts. 75 a 84, embora equívocos, não chegaram à admissão explícita da reeleição; e a de 1969 (art. 151, § 1º, a) manteve-lhe o veto absoluto). As inspirações da irreelegibilidade dos titulares serviram de explicação legitimadora da inelegibilidade de seus familiares próximos, de modo a obviar que, por meio da eleição deles, se pudesse conduzir ao continuísmo familiar. Com essa tradição uniforme do constitucionalismo republicano, rompeu, entretanto, a EC nº 16/97, que, com a norma permissiva do § 5º do art. 14 CF, explicitou a viabilidade de uma reeleição imediata para os Chefes do Executivo. Subsistiu, no entanto, a letra do § 7º, atinente a inelegibilidade dos cônjuges e parentes, consangüíneos ou afins, dos titulares tornados reelegíveis, que, interpretado no absolutismo da sua literalidade, conduz a disparidade ilógica de tratamento e gera perplexidades invencíveis. Mas, é lugar comum que o ordenamento jurídico e a Constituição, sobretudo, não são aglomerados caóticos de normas; presumem-se um conjunto harmônico de regras e de princípios: por isso, é impossível negar o impacto da Emenda Constitucional nº 16 sobre o § 7º do art. 14 da Constituição, sob pena de consagrar-se o paradoxo de impor-se ao cônjuge ou parente do causante da inelegibilidade o que a este não se negou: permanecer todo o tempo do mandato, se candidato à reeleição, ou afastar-se seis meses, para concorrer a qualquer outro mandato eletivo. Nesse sentido, a evolução da jurisprudência do TSE, que o STF endossa, abandonando o seu entendimento anterior." (RE 344.882, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 06/08/04)
3 - O princípio da moralidade também figura entre os fundamentos do direito eleitoral. Está, como vimos, impregnado na própria etimologia da expressão candidato, aquele cidadão sem máculas e apto para vestir a toga candida.
Ganhou reforço com a entrada em vigor da norma prevista no art. 41-A da Lei das Eleições, que pune com perda do registro de candidato ou do diploma aquele que praticar a captação ilícita de sufrágio, a chamada compra de votos.
Outra manifestação desse princípio é a que se encontra no art. 14, § 9º:
Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação da EC de Revisão nº 04/94)
O caso recente e notório em que o tema voltou à discussão na jurisprudência foi o da impugnação da candidatura do ex-deputado Eurico Miranda, presidente do clube Vasco da Gama. Impugnada no TRE do Rio, a candidatura do cartola vascaíno foi salva por uma decisão do TSE, apertada, 4 a 3, e que foi reportada assim no Última Instância:
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decidiu nesta quarta-feira (20/9) que o presidente do Vasco da Gama, Eurico Miranda (PP-RJ), pode disputar as eleições de 2006 para deputado federal —o primeiro turno está marcado para o dia 1º de outubro. A decisão é resultado de julgamento de um recurso de Eurico à decisão do TRE-RJ (Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro), que negou seu registro de candidatura por considerar que Eurico não teria “postura moral” para exercer cargo público, já que responde a vários processos criminais.
O último voto que faltava, do ministro Gerardo Grossi, foi proferido no início da noite desta quarta-feira, resultando em um placar apertado: 4 a 3 votos em favor do presidente do Vasco. Votaram a favor de Eurico os ministros Marco Aurélio, presidente do TSE, Cezar Peluso, Marcelo Ribeiro e Grossi; contra, ficaram os ministros Carlos Ayres Britto, Cesar Asfor Rocha e José Delgado.Grossi recomendou a aprovação de candidatura de Eurico diante da falta de sentença transitada em julgado que pudesse incriminá-lo.
Direito Individual x Direito Coletivo
O julgamento do recurso de Eurico foi marcado por intenso debate que confrontou os direitos individuais e os direitos coletivos previstos na Constituição Federal. De um lado, os ministro contrários ao registro de candidatura defendiam que os direitos coletivos estavam acima dos individuais. De outro, os ministros que entendem que não se pode considerar alguém culpado antes de se esgotarem todas as possibilidades de recurso (setença transitada em julgado).
O debate se iniciou com o voto do ministro Ayres Britto. Para ele, a Constituição traz como prioritários o respeito à soberania popular e à democracia representativa, que deveriam se sobrepor ao direito individual. O ministro destacou que, enquanto o princípio da não culpabilidade está previsto no capítulo dos direitos individuais da Constituição 1988, os direitos políticos —usados para basear o recurso de Eurico— estão no capítulo dos direitos coletivos. “O eleitor não exerce o direito para se beneficiar, o mesmo acontecendo com o candidato a cargo político eletivo, que ali está para representar uma coletividade, jamais para servir a si próprio”, afirmou Ayres Britto. Segundo ele, Eurico responde a nove processos na Justiça, sendo oito penais e um por improbidade administrativa. Dentre esses crimes, estão: falsificação de documentos públicos; crimes contra o sistema financeiro e tributário; ausência de contribuições previdenciárias; injúria e difamação; furto e lesão corporal. Em nenhum dos casos, há sentença condenatória transitada em julgado.“É chegada da hora de se dar a essa Constituição uma interpretação de pureza e decantação do regime democrático. A Lei Complementar 64/90 [Lei das Inelegibilidades] silenciou, não diz o que vem a ser vida pregressa”, ressaltou o ministro, que foi acompanhado em seu voto pelos ministros Cesar Asfor e José Delgado.
Contra-argumentação
O relator do caso no TSE, ministro Marcelo Ribeiro, considerou em seu voto que não se poderia confundir o princípio da não culpabilidade com o da inelegibilidade.
O ministro Cezar Peluso acompanhou a tese de Ribeiro. De acordo com Peluso, a garantia constitucional da presunção da inocência está acima de “qualquer modalidade de sanção ao patrimônio jurídico” do réu ou do investigado. O princípio está presente no artigo 15, inciso III, da Constituição. Peluso julgou também que a própria Constituição determina que uma lei complementar iria estabelecer os casos de inelegibilidade. “É preciso que a lei defina a tipicidade do fato que caracterize a inelegibilidade, caso contrário, não há nada que se possa fazer”, afirmou.
O presidente do TSE, ministro Marco Aurélio, reafirmou seu entendimento de que os direitos políticos dos candidatos só podem ser suspensos com sentença condenatória da qual não se pode mais recorrer (transitado em julgado). Para ele, caberia ao eleitor reprovar nas urnas os candidatos que não merecem seu voto. “Como cidadão, posso dar cartão vermelho aos candidatos no dia 1º de outubro”, disse Marco Aurélio, destacando que “o vácuo deixado pelo Congresso não autoriza o Judiciário a legislar”.
4 - Há também o princípio da anterioridade anual, previsto no art. 16 da Constituição: A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. (Redação da EC nº 04/93)
- A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 22-3-06, DJ de 10-8-06).
- “O Tribunal, por maioria, julgou improcedentes os pedidos formulados em duas ações diretas de inconstitucionalidade (...) em face da Resolução 21.702/2004, editada pelo Tribunal Superior Eleitoral-TSE, que estabeleceu instruções sobre o número de Vereadores a eleger segundo a população de cada Município. (...) Em relação ao mérito, concluiu-se pela inexistência das apontadas violações aos princípios da reserva de lei, da separação de poderes, da anterioridade da lei eleitoral e da autonomia municipal. Esclareceu-se que a Resolução 21.702/2004 foi editada com o propósito de dar efetividade e concreção ao julgamento do Pleno no RE 197.917/SP (DJ 27-4-04), já que nele o STF dera interpretação definitiva à cláusula de proporcionalidade inscrita no inciso IV do art. 29 da CF, conferindo efeito transcendente aos fundamentos determinantes que deram suporte ao mencionado julgamento. Salientando que a norma do art. 16 da CF, consubstanciadora do princípio da anterioridade da lei eleitoral, foi prescrita no intuito de evitar que o Poder Legislativo pudesse inserir, casuisticamente, no processo eleitoral, modificações que viessem a deformá-lo, capazes de produzir desigualdade de participação dos partidos e respectivos candidatos que nele atuam, entendeu-se não haver afronta ao referido dispositivo, uma vez que a Resolução sob análise não ocasionou qualquer alteração que pudesse comprometer a finalidade visada pelo legislador constituinte.” (ADI 3.345 e 3.365, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-8-05, Informativo 398)
Aqui, o caso mais notório de debate em torno do alcance desse princípio foi o chamado caso da verticalização de coligações partidárias, inovação criada perlo TSE em 2002 e reeditada pelo Tribunal em 2006, com outros matizes. Mas, esse assunto merecerá uma explicação à parte em outro post.
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