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terça-feira, 18 de agosto de 2009

Entrevista de Márlon Reis à Época: "por que político pode ter ficha suja?"

Autor: Ricardo Mendonça

Revista Época - 17/08/2009 (pg. 54)

Em campanha por 1,3 milhão de assinaturas, o juiz quer vetar candidatos com condenação criminal

Há dez anos, um grupo de entidades juntou 1 milhão de assinaturas (1% do eleitorado) a favor de uma lei mais severa sobre compra de votos. Foi a primeira lei de iniciativa popular levada ao Congresso. Aprovada em menos de 40 dias, virou o principal instrumento de combate à corrupção eleitoral. Desde 1999, já serviu para cassar mais de 700 mandatos. Agora, as mesmas entidades querem repetir a dose. Criaram a Campanha Ficha Limpa e já coletaram 1 milhão de assinaturas a favor de uma lei sobre a vida pregressa dos candidatos. A ideia é vetar a candidatura de quem tem condenação na Justiça, mesmo quando ainda cabe recurso. Desta vez, precisam de 1,3 milhão de assinaturas, já que o eleitorado cresceu. O juiz Márlon Reis é um dos coordenadores do movimento. Ele explica os objetivos do projeto.

MÁRLON REIS

Juiz de Direito especializado em questões eleitorais e presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais. É um dos coordenadores do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Atualmente, faz curso de doutorado na Universidade de Zaragoza, na Espanha, sobre compra de votos em eleições.
ÉPOCA – O que diz o projeto de lei sobre a vida pregressa dos candidatos?

Márlon Reis – Ele estabelece que deve ficar afastado do processo eleitoral o candidato que sofreu condenação em ação penal pública por crimes considerados graves, como homicídio, estupro, narcotráfico, entre outros. Também vale para crimes relacionados à administração pública, como desvio de verbas. Hoje, a pessoa pode ser candidata enquanto não for julgada pelo último tribunal. Pelo projeto, basta sentença de primeira instância para impedir a candidatura.

ÉPOCA – E quais são os crimes pouco graves que permitiriam a candidatura?

Reis – Crimes de menor potencial ofensivo, como desacato, injúria, resistência à ordem de autoridade. Além disso, estão de fora as ações penais privadas, aquelas em que um particular pode mover contra outro. É para evitar que alguém faça isso com a finalidade de tumultuar a candidatura do adversário.

ÉPOCA – Muitas sentenças de primeira instância são reformadas em tribunais superiores. Não é injusto vetar a candidatura de quem ainda pode ser absolvido?

Reis – Eu entendo que a sentença penal de primeira instância deve ter algum significado, não pode ser considerada irrelevante. A sentença deve, no mínimo, acender um sinal amarelo. Pretendemos apenas que ela sirva para limitar uma candidatura. Existe, sim, a possibilidade de ser reformada. Mas há também a possibilidade de uma absolvição ser reformada. E mesmo decisões do último tribunal podem ser incorretas. A mensagem do projeto é a seguinte: se você recebeu uma sentença condenatória, então resolva primeiro sua pendência criminal e depois volte para a vida pública.”Há muitos parlamentares processados, mas o Supremo Tribunal Federal nunca condenou ninguém”

ÉPOCA – Mas a restrição à candidatura, por si só, já não é uma pena?

Reis – Não. Isso não é uma punição, é apenas uma restrição. Será uma medida preventiva. A lei vai limitar alguns aspectos da vida política do indivíduo, mas em defesa da sociedade. A Constituição permite ao Congresso editar leis que estabeleçam casos de inelegibilidade. Como o Congresso não fez isso até hoje, estamos mobilizando a sociedade para que cobre do Congresso essa providência.

ÉPOCA – O projeto não fere o princípio da presunção da inocência?

Reis – Ninguém pode ser juiz se tiver ocorrências em sua vida pregressa. Ninguém pode ser vigia se tiver problemas no passado, pois a Polícia Federal organiza um cadastro dos vigias e elimina quem tem condenação em qualquer instância. A regra, aliás, serve para todo o setor público. Por que com os políticos deveria ser diferente? Por que político pode ter ficha suja? O princípio da presunção da inocência serve para que o acusado não receba uma pena em caráter definitivo antes de ser julgado. Ele se aplica no Direito Penal, mas não no âmbito administrativo. Se fosse aplicar ao extremo o princípio da presunção da inocência, poderíamos ter uma pessoa condenada em duas instâncias por narcotráfico passando num concurso da Polícia Federal. Mas isso não acontece, é lógico. A PF elimina antes.

ÉPOCA – Quem será atingido?

Reis – Acho que, principalmente, os prefeitos de pequenas cidades que desviaram verbas. Isso porque, nos pequenos municípios, os prefeitos deixam de ser meros gestores e atuam como ordenadores de despesas. Então eles são identificados nos processos judiciais.

ÉPOCA – E os deputados federais, senadores, governadores?

Reis – Esses têm foro privilegiado e, portanto, nunca vão receber uma condenação de primeira instância. Para eles, a regra deve ser um pouco diferente. Eles devem ser afastados quando há o recebimento da denúncia. Por que a diferença? Porque, em tribunais superiores, o recebimento da denúncia é um ato bem mais fundamentado. Além disso, é decidido por um tribunal, não por apenas um magistrado. O recebimento da denúncia pela corte só é feito mediante a existência de provas de um ilícito e de elementos que liguem esses indícios ao acusado. É o suficiente para acender o sinal amarelo. Vale lembrar que há muitos parlamentares processados, mas o Supremo Tribunal Federal jamais condenou ninguém.

ÉPOCA – Durante o período de campanha, a Justiça consegue ser rápida. Pedidos de direito de resposta em propaganda eleitoral, por exemplo, são decididos em poucas horas. Por que não há a mesma agilidade após a eleição?

Reis – Deveria haver, mas há uma explicação legal para isso. A legislação estabelece uma prioridade para ações eleitorais durante o período eleitoral. Após a votação, no entanto, acaba a prioridade. Então, os processos que não foram resolvidos até a data da votação perdem a prioridade sobre os demais. Eu entendo que isso deveria ser mudado. A prioridade do processo eleitoral deveria valer até a conclusão da ação, independentemente da data da eleição.ÉPOCA – A campanha optou por coletar assinaturas. Não seria mais fácil pedir para um deputado fazer o projeto? Reis – Não seria difícil arrumar o apoio de parlamentares para apresentar o projeto. O que não se consegue é fazer com que o Parlamento vote a matéria. Há projetos sobre o tema que estão parados há dois anos. Com apoio popular, a esperança é que o Congresso se sensibilize para votar logo. Queremos que a lei da vida pregressa esteja em vigor já na próxima eleição.

ÉPOCA – A exigência de 1% de assinaturas do eleitorado para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular é alta, baixa ou adequada?

Reis – Parece adequada. O problema é que o Congresso só aceita assinaturas no papel, o que torna impossível a conferência. Quem vai checar? Hoje, com os recursos tecnológicos disponíveis, já poderiam aceitar como válidas as adesões feitas pela internet. Para evitar fraudes, basta fazer convênios com provedores confiáveis e aplicar alguns mecanismos tecnológicos para impedir identificações falsas ou repetidas.

domingo, 16 de agosto de 2009

"O voto é a única coisa que você não tem. O voto é do eleitor."

MARINA SILVA na revista ISTO É.


A sra. esperava que a repercussão da sua candidatura fosse tão grande?

Acho que fomos todos surpreendidos. Vejo isso como muito positivo. O Brasil precisa fazer jus à potência ambiental que é. Essa luta tem 30 anos e tem uma densidade muito significativa nos vários segmentos da sociedade. Diante de uma crise econômica que só se soluciona resolvendo a crise ambiental, e uma crise ambiental que, ao se resolver, não pode negar a questão econômica, o tema aparece com alguma densidade.

Qual a importância de o tema da sustentabilidade entrar no debate?

Essa questão está colocada na minha trajetória de vida há muito tempo. Estou comprometida com a luta da sustentabilidade. E esse desafio não pode estar presente só numa candidatura do PV. Quando Juscelino Kubitschek resolveu industrializar o Brasil, ele partiu de uma visão antecipatória de País. Nesse caso, é uma visão antecipatória para a civilização. O Obama entrou em cena e os EUA são como os superatletas: quando entram em cena fazem a diferença. Com a capacidade técnica e de recursos que eles têm, eles podem fazer a diferença. Mas o Brasil talvez seja o único que tenha condições de fazer o que os EUA fizeram no passado. Nós temos os recursos. O Brasil tem um potencial enorme de hidroeletricidade, tem 30 anos de tecnologia na produção de etanol, 350 milhões de hectares de área agricultável e 11% da água doce do planeta. Pode dobrar sua produção sem derrubar mais uma árvore.

A sra. falou para um amigo que estava recebendo um chamamento, como se fosse alguma coisa bíblica.

Não vou me colocar nesse lugar de projetos messiânicos. Eu estava me baseando em um texto muito bonito de Joseph Campbell, que é um dos maiores mitólogos do mundo. Ele diz que nós temos que fazer acerto de contas conosco mesmo. Às vezes, a gente é chamada interiormente para dar uma resposta.

Como a sra. vê a pesquisa que a coloca na frente da ministra Dilma Rousseff?

Não vou prender a minha decisão a pesquisas. Não vou me surpreender se outro jornal amanhã disser que estou com apenas um tracinho nas pesquisas.

É possível um candidato de partido pequeno chegar a presidente sem composição, repetindo o Obama nos Estados Unidos, numa terceira via?

Temos que dar a palavra ao eleitor. É nisso que acredito. Temos uma cultura patrimonialista muito arraigada. Alguém diz: 'Você tira voto de fulano'. O voto não é do Serra, nem da Dilma, nem do Lula, nem de ninguém. O voto é do eleitor. O voto é a única coisa que você nunca tem. No momento que você o recebe, já é passado e o eleitor já está livre para votar em quem ele quiser. As pessoas já estão cansadas que se façam as coisas para elas. É melhor se dispor a fazer com elas, com os jovens, os empresários, as mulheres, os idosos e os formadores de opinião. Foi essa questão que o Obama colocou na cultura americana, que era muito polarizada. O Obama foi capaz de transitar entre as duas coisas para estabelecer uma ponte. A humanidade precisa cada vez mais de pontes.

Como a sra. recebeu as declarações do ex-ministro José Dirceu, dizendo que o mandato da sra. pertence ao PT?

Acho que o ex-deputado José Dirceu não falaria isso em tom de ameaça. Ele é uma pessoa que trabalhou o tempo todo na organização partidária, muito zeloso pelo estatuto, por essas coisas. Ele olha para a legislação. Nunca me senti intimidada por outras ameaças muito perigosas, imagina por uma pessoa como o Zé Dirceu. Isso não é algo que me faria mudar de ideia.

Como a sra. acompanha a crise no Senado?

Com muita preocupação. O Congresso é a representação da sociedade, aqui se estabelece o debate, se realizam os acordos sociais mediados, que deveriam ser por meio de um debate consequente. Lamentavelmente isso está interditado por essa crise. Acho que não devemos encará-la com um discurso udenista simplesmente, que não vai nos tirar do buraco. São as investigações que têm de ser feitas pela Polícia Federal, pelo Ministério Público, com a anulação de atos. É preciso fazer isso com equidistância para que a sociedade creia que de fato esteja sendo feito, porque já há um descrédito a priori. Foi por isso que apresentamos a ideia à bancada que deveria ser um afastamento temporário do senador José Sarney. Seria o melhor para a sociedade, para o Congresso e para o próprio presidente Sarney.

Qual é a frase da "Bíblia" que mais inspira a vida da sra.?

É uma frase do apóstolo Paulo: 'Examinai tudo e retende o bem'. Com essa frase, ele diz que não se deve ter preconceito contra ninguém, nenhuma ciência e filosofia. E você não pode impor sua vontade aos outros.

O presidente Lula fez um comentário elogioso a sua possível candidatura. Como está o relacionamento com ele?

Não mudou. Digo que tenho tido bons mantenedores de utopia. Quando eu era uma jovem, talvez mais sonhadora do que hoje, a gente tinha bons mantenedores de utopia, tínha Chico Mendes, Darci Ribeiro, Celso Furtado, Leonardo Boff, Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso. Mas, aos 51 anos, ainda sou uma sonhadora. E quero ser mantenedora de utopia.

A senhora ainda inclui o presidente Lula como mantenedor de utopia?

Ele é um realizador de utopias. Fazer a política social que ele está fazendo é a realização de uma utopia.

A sra. se aconselhou com Leonardo Boff. Ele deu alguma sugestão sobre a candidatura?

Ele disse que eu escutasse o meu coração.

E o que diz seu coração?

Meu coração está me sussurrando.

domingo, 21 de setembro de 2008

Entrevista de Barroso à Conjur

Na entrevista, a segunda da série que a ConJur publica em comemoração aos 20 anos da Constituição de 88, o professor fala de reforma política, políticas sociais, analisa o perfil ativista do Supremo Tribunal Federal e mostra como algumas das principais garantias dos cidadãos nos Estados Unidos foram conseguidas graças a um movimento semelhante ao que acontece hoje no Brasil: “Quando a política tradicional vive um mau momento, o Judiciário se expande. E, cá para nós, antes o Judiciário que as Forças Armadas”. Consciente da utilidade circunstancial do ativismo judicial, porém, ele faz uma advertência. “Ativismo é como colesterol: tem do bom e tem do mau.”


Leia a entrevista

ConJur — A Constituição de 1988 judicializou a vida do país?

Luís Roberto Barroso — A vida brasileira se judicializou, sobretudo nos últimos anos. E só parte da responsabilidade é da Constituição de 88. Por ser bastante analítica, ela trouxe para o espaço da interpretação constitucional algumas matérias que, se não tivessem sido constitucionalizadas, seriam discutidas no Congresso, no processo político majoritário. Não nos tribunais.
ConJur — Quanto mais extensa e analítica a Constituição, mais a Justiça é chamada a decidir?
Barroso —Na medida em que o assunto está na Constituição, ele sai da esfera política, da deliberação parlamentar, e se torna matéria de interpretação judicial. Então, em uma primeira abordagem, a Constituição de 88 contribui sim para que o Judiciário tenha um papel muito mais ativo na vida do país. Mas há um segundo motivo para isso. O atual sistema político brasileiro levou a um descolamento entre a sociedade civil e a classe política. Há algumas demandas da sociedade que não são atendidas a tempo pelo Congresso Nacional. E o que acontece? Nos espaços em que havia demandas sociais importantes e o Legislativo não atuou, o Judiciário se expandiu. Aqui penso ser oportuno fazer uma distinção entre judicialização e ativismo judicial, que são idéias que estão próximas, mas não se confundem. Judicialização é um fato, que identifica a circunstância de que muitas questões que antes eram próprias da política passaram a ser decididas pelo Judiciário, foram transformadas em pretensões veiculadas perante juízes e tribunais. O ativismo é uma atitude, que identifica uma interpretação expansiva da Constituição, incluindo no seu âmbito de alcance questões que não foram nela expressamente contempladas.
ConJur — A decisão do Supremo sobre a fidelidade partidária e a edição da Súmula Vinculante que proíbe o nepotismo ilustram isso?
Barroso — Sim. Há um déficit de legitimidade do processo político majoritário para atender algumas das grandes demandas da sociedade e, portanto, o Judiciário está suprindo este déficit. Mas não há democracia sem um Poder Legislativo atuante, dotado de credibilidade e com identificação com a sociedade civil. Portanto, eu não acho que a nossa postura deva ser de simples crítica ao Legislativo, mas sim de repensá-lo para recolocá-lo no centro da política. Quando vier a reforma política que nós precisamos, aumentando a representatividade do Parlamento, acredito que haverá tendência de redução da presença do Judiciário no espaço público. Esse movimento é pendular e se verifica em diferentes partes do mundo: quando a política tradicional vive um bom momento, o Judiciário se retrai; quando a política tradicional vive um mau momento, o Judiciário se expande. E, cá para nós, antes o Judiciário que as Forças Armadas.
ConJur — Em outras palavras, a Constituição de 88 ajudou a atrofiar o Legislativo e deu músculos ao Judiciário?
Barroso — Ela tratou de muitas matérias que na maior parte dos países são deixadas para a legislação ordinária. A Constituição é prolixa, analítica e casuística. E, veja, sou um defensor da Constituição de 88 porque ela representa um vertiginoso sucesso institucional. Mas o momento da elaboração da Constituição fez com que ela fosse a Constituição das nossas circunstâncias, e não a Constituição da nossa maturidade. Esse é o produto indesejável do processo democrático brasileiro da ocasião. E, naquelas circunstâncias, talvez fosse inevitável promulgar essa Constituição analítica. Havia muita demanda da sociedade brasileira de participar do processo constituinte.
ConJur — Como a Constituição influi na relação entre os poderes?
Barroso — O problema de colocar na Constituição o que deveria estar na legislação ordinária infraconstitucional é que obriga a política ordinária a se desenvolver organizando maiorias qualificadas. Porque para aprovar uma lei ordinária, é preciso maioria simples do Congresso. Mas para fazer uma emenda à Constituição, é preciso ter três quintos dos votos. Então, a excessiva constitucionalização das matérias é responsável, em alguma medida, pelo tipo de relação que o Executivo tem que estabelecer com o Congresso porque o governo precisa contar com maiorias qualificadas para cada mudança importante. Fazer política fica mais difícil porque ela tem de se mover por quóruns excessivamente elevados.
ConJur — Não seria o caso, então, de fazer uma reforma constitucional?
Barroso — A Constituição de 88 cumpre o papel principal que cabe a ela, que é assegurar estabilidade institucional e absorver os conflitos políticos dentro do quadro da legalidade pré-estabelecida. Mas, em algum lugar do futuro, não com o poder constituinte originário, mas com o poder constituinte derivado, teremos que tirar da esfera constitucional uma boa quantidade de matérias. Eu não falo das matérias polêmicas, como direitos sociais. Eu falo do varejo da vida em matéria previdenciária, de administração pública, tributária. Não das grandes questões, mas de miudezas que estão na Constituição, e não deveriam estar.
ConJur — O fato de ser muito analítica justifica que a Constituição tenha 56 emendas, fora as de revisão, em 20 anos?
Barroso — Para cada pequena mudança da realidade social é preciso reformar a Constituição. É verdade que a vida política não se move por modelos ideais, e sim por modelos possíveis, mas o modelo ideal é que um partido liberal possa governar com essa Constituição, um partido trabalhista possa, e que sirva também ao governo de um partido conservador. Cabe à Constituição estabelecer os direitos e valores fundamentais de uma sociedade e deixar o restante para a política. Parte disso também é culpa do que eu gosto de chamar de narcisismo constitucional. Cada um que chega ao poder quer uma Constituição à sua imagem e semelhança.
ConJur — Mas, então, pode-se dizer que a Constituição tem até poucas emendas?
Barroso — Não diria que 56 emendas são pouca coisa. Mas, se considerarmos a quantidade de questões ordinárias que foram postas na Constituição, o número de emendas não é surpreendente.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal está legislando?
Barroso — O Supremo tem interpretado pró-ativamente a Constituição e, assim, atende as demandas da sociedade. Não considero que o Tribunal esteja invadindo o espaço da política no sentido impróprio que isso poderia significar. O Supremo tem invadido o espaço da política, em alguma medida, munido da Constituição. Isso não é um fenômeno positivo ou negativo, mas sim uma circunstância da realidade brasileira. Na Suprema Corte americana, processo muito semelhante aconteceu a partir de 1953, depois que o juiz Earl Warren tornou-se presidente daquele tribunal. Ele liderou a fase do ativismo judicial da Suprema Corte, que vai até 1969, quando ele se aposenta. Em seguida, Richard Nixon toma posse na Presidência dos Estados Unidos (1969-1974) e tem início uma fase mais conservadora e, portanto, de maior auto-contenção.
ConJur — A chamada Corte Warren é bastante lembrada.
Barroso — Porque no período de Warren a Suprema Corte fez algumas das grandes reformas que a sociedade americana precisava e que o Congresso não conseguia fazer, a começar pela fixação da igualdade racial. Nos Estados Unidos, sobretudo nas escolas públicas, a integração racial entre crianças brancas e negras foi feita por uma decisão da Suprema Corte, de 1954, no caso Brown vs. Board of Education. O que aconteceu na época? Nem o Congresso e nem o Legislativo dos estados do sul aprovavam leis que assegurassem igualdade entre crianças brancas e negras nas escolas públicas. Portanto, era uma hipótese em que o processo político majoritário não iria realizar os direitos fundamentais daquelas crianças de serem tratadas com igualdade. A Suprema Corte rompeu a inércia e determinou que as escolas públicas em todos os estados admitissem crianças brancas e negras convivendo juntas. Antes, havia escolas para brancos e escolas para negros. A Suprema Corte determinou a integração. Isso não foi feito por lei, nem com o apoio do Legislativo.
ConJur — Houve apoio do Executivo?
Barroso — Não, pelo contrário. Numa prática incomum, o Eisenhower [ Dwight Eisenhower, que presidiu os Estados Unidos entre 1953 e 1961] pediu a Warren que, por favor, não julgasse a favor da integração. E a Suprema Corte, desafiando o status quo racista, sobretudo dos estados do sul, tomou essa decisão. A Justiça levou dez anos para conseguir que ela fosse cumprida, porque foi só na década de 60, já com o movimento dos direitos civis dos negros liderados por Martin Luther King, que isso foi concretizado. Este é um exemplo em que o processo político majoritário emperra e quem tem que atuar é a Suprema Corte.
ConJur — Há outros exemplos que refletem o que acontece hoje no Brasil?
Barroso — Sim. Os direitos dos acusados em processos criminais também foram assegurados pela Suprema Corte americana na era Warren, sob críticas severas da sociedade. A população não queria direitos para presos ou para acusados. Com o aumento da criminalidade, as pessoas queriam exacerbar o processo penal. E foi a Suprema Corte que assegurou direitos fundamentais, como o de ser assistido por um advogado, no caso Gideon; o direito de não se incriminar, no célebre caso Miranda vs. Arizona. Foi a Suprema Corte que impediu o uso de provas ilícitas, o chamado unreasonable seizure, e determinou que não se pode fazer busca sem mandado ou utilizar provas ilícitas. Então, foi a Suprema Corte dos Estados Unidos que, diante da omissão do Legislativo, estabeleceu regras para o processo penal e assegurou direitos aos acusados em uma época em que a sociedade queria a exacerbação do Direito Penal.
ConJur — A Justiça atua porque políticos que defendem esses direitos correm o risco de não se eleger.
Barroso — O Nixon, por exemplo, se elegeu com discurso de crítica à jurisprudência da Suprema Corte. Foi a Suprema Corte de Warren, também, que estabeleceu os grandes precedentes de liberdade de expressão. Determinou, por exemplo, que só se pode responsabilizar o jornalista por divulgar uma informação se ele souber que ela é falsa ou se ele tiver sido totalmente negligente, sem o mínimo de prudência na apuração da verdade. Criou-se o critério que vigora até hoje, e que depois da redemocratização nós seguimos no Brasil, de que a liberdade de expressão é uma liberdade preferencial — ela é tão importante para o desfrute de todas as outras liberdades, que, em princípio, deve prevalecer. Evidentemente, nenhum direito é absoluto e pode haver casos em que ela tenha que ceder, mas como regra a primeira atitude do intérprete da Constituição deve ser a de prestigiar a liberdade de expressão. Esta idéia sofre hoje o ataque de inúmeras outras visões que querem proteger o direito de privacidade, o direito de um julgamento justo. Portanto, é uma idéia ainda dominante, mas não é axiomática.
ConJur — A tentativa de alguns juízes e procuradores de proibir a imprensa de entrevistar candidatos em período pré-eleitoral mostra isso.
Barroso — É um esforço geralmente inútil tentar pautar a imprensa. Não que a imprensa não erre ou não exagere. Isso acontece. A questão é saber se devemos permitir que o Estado interfira nisso. Geralmente, o Estado erra mais do que a imprensa.
ConJur — Pode-se dizer que vivemos hoje o que os Estados Unidos viveram há 50 anos.
Barroso — Os Estados Unidos viveram uma era em que o Executivo se retraiu e o Judiciário se expandiu. Depois, a partir da década de 70, com os governos conservadores nos Estados Unidos, ocorreu um movimento inverso. Talvez a última decisão verdadeiramente ativista da Suprema Corte foi sobre o aborto, em 1973. Muitos anos de governos republicanos levaram a uma posição menos ativista. Ou, quando ativista, de um ativismo conservador, porque é importante observar que ativismo é como colesterol: tem do bom e tem do ruim.
ConJur — Isso mostra que o governo pode moldar a Corte. No Brasil, a cada ministro do Supremo que se aposenta, reabre-se a discussão sobre a forma de indicação. O senhor acha que deveria ser diferente do que é hoje?
Barroso — Não. A forma de indicação é muito boa e acho que é a única possível. Existem críticas, mas no Brasil o presidente da República tem mais responsabilidade política do que o Parlamento, pela visibilidade que tem e pela possibilidade de se reconduzir a ele qualquer erro político que cometa. Como o Congresso é colegiado e suas decisões se diluem por um número muito grande de pessoas, é mais difícil de responsabilizá-lo politicamente. Ou seja, se o presidente da República fizer uma má escolha, ele carregará pela vida o peso de ter feito essa má escolha. Mas se o Parlamento fizer uma má escolha, ninguém saberá exatamente quem responsabilizar. O modelo americano, que se segue no Brasil, em que o presidente escolhe e o Senado aprova, é um modelo que funciona bem.
ConJur — A Súmula Vinculante e a Repercussão Geral serão suficientes para desafogar o Supremo?
Barroso — Esses são dois institutos importantíssimos para a própria sobrevivência do Supremo Tribunal Federal. Todos os tribunais constitucionais do mundo têm algum grau de controle sobre a sua agenda, para que possa separar os casos verdadeiramente importantes, emblemáticos e passar as mensagens corretas para a sociedade. A jurisdição constitucional exercida às dezenas de milhares de processos evidentemente se torna extremamente disfuncional e se perde em um varejo de miudezas. O Supremo deve ter o poder de selecionar as grandes questões nacionais, as que têm verdadeiramente repercussão geral e decidi-las. É assim que funciona a Suprema Corte americana, é assim que funciona o Tribunal Constitucional Federal alemão.
ConJur — A escolha de matérias para julgamento e o efeito vinculante se tornam ainda mais necessários num quadro em que a administração recorre de tudo e as instâncias inferiores, muitas vezes, afrontam a jurisprudência superior.
Barroso — As decisões do Supremo Tribunal Federal devem ter eficácia vinculante intelectual de uma maneira geral, independentemente de Súmula Vinculante. Em nome da segurança jurídica, da isonomia e da eficiência, temos de criar uma cultura de respeito aos precedentes. Como regra geral, os juízes e os tribunais devem respeitar as teses jurídicas firmadas pelos tribunais superiores. É assim em toda parte do mundo. Isso é um avanço civilizatório. É claro que não se pode impedir o juiz de decidir que, no seu caso concreto, determinada tese firmada por um tribunal superior produz um resultado que ele não pode aceitar. Neste caso, ele pode não seguir o precedente, mas terá o ônus argumentativo de demonstrar porque ele não está seguindo o precedente. Mas, fora isso, o juiz tem todo o direito de pensar diferentemente, mas dirá: “Me curvo à orientação do tribunal superior”. Se o Supremo assentou determinada orientação em matéria de uso de algema, por exemplo, uma sociedade civilizada, mesmo que não houvesse Súmula Vinculante, deveria se curvar à orientação. Quando a Suprema Corte americana determinou que a autoridade policial, no ato da prisão, tinha de informar ao preso que ele tem o direito de permanecer calado, isso se introduziu na cultura policial americana.
ConJur — O que o senhor identifica de importante que deveria ter sido regulamentado depois da Constituição de 88 e não foi até agora?
Barroso — Pontualmente, eu citaria o exemplo da greve dos servidores públicos, que foi objeto do Mandado de Injunção decidido pelo Supremo Tribunal Federal [os ministros decidiram que enquanto o Congresso não regulamenta o direito, valem para os servidores públicos as mesmas regras dos trabalhadores da iniciativa privada]. Mas acredito que essa discussão não é tão importante. O que faltou foi a implementação adequada de políticas públicas.
ConJur — O senhor pode dar exemplos?
Barroso — Veja, esta é a visão política de um cidadão, não a visão jurídica de um professor. Mas há muitas décadas o Brasil não tem nenhum plano habitacional para famílias de baixa renda, o que faz com que o Estado brasileiro seja um favelizador ideológico. As pessoas pobres precisam morar e se não há um planejamento estatal para suprir essa necessidade, você faveliza o país. Quando a Constituição consagra o direito de moradia, ela não está assegurando que cada pessoa pode exigir do Estado uma residência, mas esse direito exige que o Estado brasileiro tenha políticas habitacionais mínimas e consistentes para inclusão dessas pessoas na cidadania formal. As favelas são, em parte, o fruto de uma absoluta ausência dessa política. E fazer política habitacional significa não apenas assentar pessoas, mas dar transporte, colocá-las em lugares onde haja trabalho adequado próximo. Mesmo nas cidades que estão enriquecendo com royalties de petróleo não há nenhum planejamento urbanístico, civilizatório.
ConJur — O Rio de Janeiro, seu estado, é um grande exemplo dessa falta de política habitacional.
Barroso — Sim. Eu tenho a teoria de que o Rio é o lugar verdadeiramente cosmopolita do Brasil. Há lugares no país extremamente desenvolvidos e industrializados que são provincianos. O Rio é cosmopolita, tem um pouco de tudo de bom e de ruim que há no Brasil. Ele vive a ventura e a infelicidade de ser um pouco da expressão do país. E o Rio teve sucessivos governos sem projeto abrangente de cidade e de cidadania. Agora o problema está muito difícil de ser resolvido. Mas mesmo os problemas difíceis precisam ser equacionados, precisam de projetos. Vou lhe dar um exemplo prosaico. Eu morava na Barra da Tijuca, no Rio. Em 1998, o trânsito ficou tão insuportável que eu me mudei. Até hoje, não foi feito nenhum projeto viário novo para a Barra da Tijuca. Como é que pode uma cidade não ter um projeto viário novo em dez anos? Esse é um exemplo microscópico, mas mostra a incapacidade de abstração e de pensar o país para sequer os próximos cinco anos ou dez anos. Quando eu escrevi uma proposta de reforma política para o Brasil, eu a propus para vigorar depois de oito anos. Ninguém deu atenção. “Como é que pode ser um negócio para daqui a oito anos?”, questionaram.
ConJur — A reforma política é um nó que parece impossível de desatar. Por quê?
Barroso — Vou lhe dar outro exemplo. Eu escrevi um trabalho sobre distribuição de medicamentos por decisão judicial e a repercussão foi muito grande: foi publicado pela imprensa, recebi grande quantidade de mensagens de e-mail e de convites para participar de debates públicos sobre a questão da distribuição de medicamentos. Já o estudo que fiz sobre reforma política não produziu nenhum tipo de retorno, nem de participação em debates. Essa não é uma queixa pessoal, é institucional. Isso demonstra como ninguém está muito motivado a participar deste debate.
ConJur — As discussões políticas costuma ser ignoradas pela maioria das pessoas.
Barroso — Há dois espaços na vida brasileira que foram negligenciados nesses 20 anos de democracia. Um é o tema da reforma política. Ela é necessária. Defendo um sistema que contenha a pulverização partidária. Tem que haver um número de partidos que efetivamente expresse divisões ideológicas relevantes da sociedade, e não idiossincrasias individuais. Eu insisto, menos do que gostaria, na idéia de um debate sobre presidencialismo. O Brasil vive 20 anos de estabilidade institucional. Esta é a hora de criarmos um modelo imune a crises dramáticas, imune a aventuras autoritárias como as que estão acontecendo pela América Latina. O presidencialismo imperial latino-americano é um desastre. É hora de reformular o sistema presidencialista.
ConJur — Como?
Barroso — Há dois modelos no mundo que deram muito certo. São o modelo francês e o modelo português. Nesses dois países, vigora um presidencialismo atenuado. Não é parlamentarismo, como na Alemanha ou na Itália. Na França e em Portugal, o presidente é eleito por voto direto, e disso nós não podemos abrir mão no Brasil. O presidente tem a carga de legitimidade e a força política desta investidura por voto popular. Mas nesses países o presidente desempenha as funções de Estado, cuida das questões relevantes. Ele pode apresentar projetos de lei, ele nomeia os comandantes das forças armadas, os ministros dos tribunais superiores, mas não atua no varejo do cotidiano da política. Esta tarefa é do primeiro-ministro, escolhido pela maioria parlamentar. A idéia de que nós precisamos trabalhar com maiorias parlamentares consolidadas a cada tempo é importantíssima para acabar com as relações muitas vezes não republicanas entre o Executivo e o Parlamento. Alguém tem que ser o fiador da estabilidade, das grandes questões do Estado, e esse deve ser o presidente da República.
Revista Consultor Jurídico, 21 de setembro de 2008

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Jorge Hage

O ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Jorge Hage, afirmou em entrevista exclusiva ao Contas Abertas que o único modo para se combater o crime de colarinho branco no Brasil é por meio de escutas telefônicas. Segundo ele, a polícia precisar usar o grampo para combater e prender o criminoso que comete esse tipo de delito. "Essas investigações precisam de métodos diferentes dos usados nos procedimentos comuns. Eu não participo dessa paranóia contra as escutas telefônicas”, afirma.Hage argumenta, porém, que se o Congresso Nacional tivesse aprovado o projeto de lei que introduz ao Código Penal o crime de enriquecimento ilícito, que tramita desde 2005, a comprovação do crime seria mais fácil. “Assim, dispensa-se a necessidade de se obter tantas provas para condenar alguém, pois o bandido é capturado pelo resultado, pelo tamanho do patrimônio. Ou ele explica que teve uma origem privada legítima ou, se ele estava atuando apenas na vida pública, como enriqueceu daquela forma?”, afirma. De acordo com o ministro, enquanto a medida não entrar em vigor, o Estado brasileiro precisa ser instrumentalizado, assim como a polícia, “braço do Estado”, para poder investigar de forma eficaz.

Laia a entrevista aqui

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Joaquim Barbosa

FOLHA - A mídia o aponta como o ministro que mais se desentende com os colegas. O sr. é uma pessoa de temperamento difícil?


JOAQUIM BARBOSA - Engano pensar que sou uma pessoa que tem dificuldade de relacionamento, uma pessoa difícil. Eu sou uma pessoa altiva, independente e que diz tudo que quer. Se enganaram os que pensavam que, com a minha chegada ao Supremo Tribunal Federal, a Corte iria ter um negro submisso. Isso eu não sou e nunca fui desde a mais tenra idade. E tenho certeza de que é isso que desagrada a tanta gente. No Brasil, o que as pessoas esperam de um negro é exatamente esse comportamento subserviente, submisso. Isso eu combato com todas as armas.

FOLHA - Gilmar Mendes chegou a dizer que o sr. "tem complexo". A ministra Carmen Lúcia insinuou que haveria um "salto social", com sua evidência no caso do mensalão. Como o sr. recebe esses comentários?

BARBOSA - A imprensa se esquece de dizer quais foram as razões pelas quais eu tive certos desentendimentos. Quase sempre foram desentendimentos nos quais eu estava defendendo princípios caros à sociedade brasileira, como o combate à corrupção no próprio Poder Judiciário. Sem aquela briga com o ministro Marco Aurélio, o caso Anaconda não teria condenação e cumprimento de penas pelos réus.

FOLHA - No julgamento de uma ação da Anaconda houve o comentário de que o sr. teria "complexo"...

BARBOSA - Achei apropriado naquele momento dar uma resposta dura. Falaram que eu sou encrenqueiro. Eu tenho amigos espalhados pelo Brasil e pelo mundo inteiro. São pessoas decentes. E eu não costumo silenciar quando presencio algo de errado, ainda que no âmbito do tribunal ao qual eu pertenço.

FOLHA - O sr. se sente isolado no Supremo?

BARBOSA - Nem um pouco. Eu tenho meu leque de amizades, que são pessoas que têm afinidades comigo, com aquilo que eu gosto, que não necessariamente coincide com o gosto da maioria do tribunal. Mas tenho boa relação com ministros.

FOLHA - Uma crítica recorrente é que o Supremo favorece as elites. Como o sr. vê essa observação?

BARBOSA - Eu ainda não amadureci a minha reflexão sobre isso. Mas há uma coisa que me perturba, que me deixa desconfortável aqui no tribunal e na Justiça brasileira como um todo. É o fato de que certas elites, certas categorias monopolizam, sim, a agenda dos tribunais. Isso não quer dizer que eu esteja de acordo com a frase de que o tribunal favorece as elites. Monopolizam a agenda.

FOLHA - Como isso ocorre?

BARBOSA - Nós temos na Justiça brasileira o sistema de preferência, tido como a coisa mais natural do mundo. O advogado pede audiência, chega aqui e pede uma preferência para julgar o caso dele. O que é essa preferência? Na maioria dos casos, é passar o caso dele na frente de outros que deram entrada no tribunal há mais tempo. Se o juiz não estiver atento a isso, só julgará casos de interesse de certas elites, sim. Quem é recebido nos tribunais pelos juízes são os representantes das classes mais bem situadas. Eu não posso avalizar inteiramente essa frase [de que o Supremo favorece as elites], mas acho que um país em que a Justiça está completamente abarrotada tem que ter atenção muito grande para esse perigo de que a agenda dos tribunais seja monopolizada por certos segmentos sociais. Basta prestar a atenção, durante cada ano, no tempo que o STF gasta julgando questões de interesse corporativo. É enorme.

FOLHA - O sr. costuma receber advogados em seu gabinete?

BARBOSA - Recebo, mas nenhum advogado, por mais importante que ele seja, monopoliza o meu gabinete [o ministro informa que concedeu 244 audiências, em 2006 e 2007].

FOLHA - Sua decisão de quebrar o sigilo do inquérito do mensalão contribuiu para a abertura do Supremo à sociedade. Quais os aspectos positivos e negativos dessa exposição?

BARBOSA - Eu acho que o lado bom é o pedagógico. Aproxima o tribunal da sociedade. Quebra com uma tradição tipicamente brasileira, ainda forte, de o juiz estar distante do cidadão. O tribunal entra nos lares dos brasileiros. As questões importantes da cidadania são debatidas, são absorvidas pelo cidadão. Acho isso muito positivo. O lado negativo disso é que essa superexposição traz uma carga de pressão muito grande em cima do tribunal. Essa hiper-exposição atrai cada vez mais demandas para o Supremo. Uma tendência natural de outros poderes e de segmentos da sociedade é pensar que tudo pode ser resolvido no Supremo. Não é tão fácil assim vir até o Supremo, e é extremamente caro.

FOLHA - Diante das decisões recentes do tribunal, alguns juízes dizem que o Supremo está se distanciando da sociedade, do mundo real.

BARBOSA - Teoricamente, acho que isso possa existir. Não quero falar sobre decisões. Em tese, o juiz não pode se desgrudar da sociedade. Ele não pode desprezar os valores mais caros da sociedade na qual opera. Seria suprema arrogância -e isso eu noto em alguns juízes brasileiros- achar que não interessa o que a sociedade pensa sobre determinadas decisões. O juiz é fruto do seu meio. Seria o supra-sumo da arrogância entender que o juiz poderia ter uma escala de valores que não leve em conta o sentimento da sociedade sobre questões que lhe são trazidas para decidir. Em um sistema judiciário que não leva em consideração o sentimento da sociedade sobre determinadas questões, a tendência é ele perder credibilidade e se transformar em monstrengo inútil, do ponto de vista institucional, a médio ou longo prazo.

FOLHA - O Supremo carece de especialistas em direito penal?

BARBOSA - Eu discordo. O Supremo não precisa de especialistas em direito penal. É verdade que na atual composição não há especialistas em direito penal. Mas uma pessoa com uma boa formação em direito público, com uma boa formação humanística, uma boa visão de mundo, que não seja paroquial, é isso que se espera do membro de uma Corte Suprema e não uma especialização exacerbada nesta ou naquela matéria. O que se espera é, sobretudo, prudência. Uma clara visão da sociedade.

FOLHA - Quantos membros do Supremo já interrogaram réus?

BARBOSA - Isso é irrelevante. Eu presido quatro grandes processos criminais, jamais vistos na história do tribunal. Eu não vou interrogar ninguém. Eu delego. Eu não preciso interrogar. A lei me dá esse poder. Não é uma corte para resolver questões pontuais. É um tribunal que julga casos com profunda repercussão na sociedade. Aqui não se cuida do varejo. Já interroguei réus. Fui procurador da República por 19 anos. Minha especialização é direito público, mas isso é bobagem, não tem a menor relevância.

FOLHA - Em que medida o foro privilegiado dificulta uma avaliação mais precisa do Supremo?

BARBOSA - Eu acho o foro privilegiado nefasto. O foro privilegiado e outras medidas são processos de racionalização da impunidade. Já disse e repito.

FOLHA - O Supremo é mais rigoroso para receber denúncias de crimes de colarinho branco?

BARBOSA - O Supremo é bem mais rigoroso em matéria penal em geral. O tribunal tem a tradição de mais rigor, nesses últimos anos. Vejamos o caso do mensalão. Com a importância do STF, com o número de causas e problemas seríssimos que tem para resolver, é racional que o tribunal gaste cinco dias inteiros só para julgar o recebimento de uma denúncia? Com todas as dificuldades que o Brasil inteiro assistiu ao vivo?O recebimento de uma denúncia como aquela, no primeiro grau, seria um despacho de duas páginas.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Britto: "Vamos ter boas novidades"

Propaganda na internet


Um dos temas, seguramente, é o controle ou não da mídia eletrônica a partir dos blogs. Isso virá à tona. A propaganda eleitoral via internet, via e-mail, via blog vai aflorar. Outro tema que virá à tona é o da vida pregressa do candidato.

Fidelidade

A democracia é um processo de aperfeiçoamento. É um processo cumulativo de qualificação. A democracia é crescentemente superavitária, ela incorpora mais saldos à sua conta bancaria e aos seus estoques de boas novidades. Nesse crescendo democrático, nós estamos pugnando pela fidelidade do filiado ao seu partido, mas em um segundo momento, nós encontraremos mecanismos para impedir, ou pelo menos dificultar, o mandonismo partidário, a oligarquia endógena partidária. Nós vamos chegar a esse ponto. O aperfeiçoamento também vai passar por esses questionamentos das figuras dos donos dos partidos, porque nós temos recebido esse tipo de queixa e é procedente. Os filiados dizem: “Vocês nos cobram fidelidade. A fidelidade a um partido que tem dono dirigido por oligarcas, cesaristas, mandões, coronéis, de terno e gravata”. Eles estão certos. Nós vamos aperfeiçoar o processo para divulgar essa idéia e criar mecanismos de que o partido tenha um compromisso, deva respeito a si mesmo, deva fidelidade a si mesmo. A primeira fidelidade é a do partido para com o seu programa e para com o processo democrático. Nós vamos descobrir mecanismos viabilizadores dessa idéia. Nós vamos chegar, já estamos chegando nessa fase da cobrança da fidelidade dos partidos ao seu programa e ao processo democrático, e aí o mandonismo, o cesarismo partidário, vai ser questionado.

Quociente eleitoral

Eu já tenho dito que o dogma é para ser convertido em problema. É para ser problematizado, analisado e estudado como todo problema. Se depois de problematizado, o dogma resiste a uma crítica consistente, devida, isenta, ele deve ser mantido e reverenciado de joelhos e mãos postas. Agora, se ele não resiste, é preciso ter coragem para estilhaçá-lo. O quociente eleitoral é um dogma. Ele resiste a uma análise na perspectiva, por exemplo, do eleitor soberano? A Constituição diz que o eleitor é soberano. O poder mais alto é o poder soberano. A soberania é o que está acima de tudo e acima de todos. O eleitor soberano, então, diz: “Eu vou votar em fulano de tal, filiado a tal partido” ou “eu não vou votar em nenhum candidato nominalmente, eu vou votar por sigla, nesse partido”. Aí vem a lei e diz que o partido que não conseguir o quociente eleitoral não se aproveita nem dos votos que lhe foram dados, nem seus candidatos se aproveitam dos votos que foram dados e partidos de candidatos que não tiveram votos se apropriam desses votos. O eleitor volta e diz: “Meu voto foi para onde? Não foi para meu candidato? Não, não foi. Não foi para o meu partido? Não, não foi. Espera aí, foi para um candidato de um partido que eu não votei”. Que soberania é essa?

Veja, não estou antecipando o meu voto, estou fazendo um questionamento. Eu já confirmei o que os sábios do direito já diziam desde sempre: quando o seu senso de justiça material reage a uma praxe, a uma tradição, preste atenção, ali está ou pode estar a grande oportunidade para se dar um salto quântico, de qualidade, para quem tiver coragem de problematizar os dogmas. Vão me dizer que o sistema é proporcional. Mas a gente não pode trabalhar com o sistema proporcional de outro modo, que não signifique uma apropriação indébita de votos do eleitor soberano? Isso é uma apropriação indébita. Não é possível bolar um sistema de representação proporcional impeditivo dessa apropriação. Nós temos um ranço autoritário que se disfarça, que se encobre, que se mascara. A quem serve o quociente eleitoral como cláusula de exclusão partidária, cláusula de barreira? Aos grandes partidos. É um mecanismo autoritário e elitista.

Ativismo judicial

Esse ativismo judiciário se dá no campo interpretativo, não é no campo legislativo. Eu nunca concordei com essa idéia de que nós estamos usurpando função. Não estamos. Esse nosso ativismo judiciário no campo interpretativo, ou seja, extraindo de velhos dispositivos jurídicos angulações normativas novas, isso faz parte do processo interpretativo, isso ajuda o Congresso Nacional a meditar sobre os temas e a ocupar o espaço que é dele. Qual é o espaço dele? É o legiferante. Então na medida em que a gente se antecipa no plano interpretativo apontando aspectos, visualidades, propriedades normativas, novas de velhos dispositivos, o Congresso se sente motivado.

É o novo olhar, o olhar democrático sobre o dispositivo, que pode desencadear uma reação normativa nova. Quem afirma isso no nível microscópico ou subatômico é a física quântica, que faz revelações extraordinárias. Ela diz que as coisas estão em movimento, que dialogam, se encontram, se interpenetram e se modificam. O observador, o cientista, consciente, atento, desencadeia reações no objeto, que acontece na realidade do observador e, em certa medida, do jeito que o observador quer. Se transportar isso para a área jurídica, o operador jurídico atento, consciente, tocado de pureza democrática, ética, projeta um novo olhar sobre o dispositivo que, por sua vez, revela uma angulação normativa imperceptível até então. É o que nós temos feito. Vamos ter boas novidades.

Ministro Carlos Britto, novo Presidente do TSE, em entrevista à Revista Consultor Jurídico

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Britto Presidente: "buscar a pureza da democracia representativa"

O Novo Presidente do TSE, Carlos Britto, toma posse amanhã, dia 6 de maio. Na Folha de São Paulo de hoje foi publicada a seguinte entrevista. Confira o perfil do novo Presidente.

FOLHA - Quais são os principais temas que o sr. espera resolver até as eleições municipais deste ano?
CARLOS AYRES BRITTO - Precisaremos, antes das eleições, aperfeiçoar o sistema de fidelidade partidária, que nós implantamos no ano passado, e retomar uma discussão sobre o quociente eleitoral em eleições proporcionais. Mas não só isso: certamente voltará à tona o tema da vida pregressa de um candidato sob suspeita e a discussão sobre se a legislação que hoje dispõe sobre jornais, rádios e televisão pode ser aplicada à mídia on-line. Por último, é necessário que o TSE debata sobre programas como o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] em ano eleitoral.

FOLHA - O que seria aperfeiçoar o sistema de fidelidade partidária?
BRITTO - Estamos cobrando dos candidatos fidelidade aos partidos e ao esquadro ideológico que sai de cada eleição. Mas o partido tem fidelidade a ele mesmo? Pode ter um programa belíssimo e uma prática feiíssima? Se estamos cobrando dos candidatos eleitos postura compatível com uma idéia de qualificação política ou de autenticidade do regime democrático representativo, então como admitir partidos com as oligarquias partidárias? Que sepulcro caiado é esse, que por fora está pintadinho, mas por dentro é uma putrefação só? Até que ponto podemos conviver com tristíssimas expressões de sepulcros caiados?

FOLHA - O sr. foi filiado ao PT por muitos anos. Como é comparar o PT atual com aquele de 20 anos atrás?
BRITTO - Quando fui indicado para ministro do Supremo, virei minha página partidária. Não por me arrepender ou por refugar, não existe isso. Mas continuo achando que o PT, na retomada do processo democrático brasileiro, cumpriu um papel fundamental. Não posso desconhecer, porém, que passou e talvez ainda passe por uma grave crise de identidade.

FOLHA - Sobre o quociente eleitoral, existe um debate acontecendo no TSE que o sr. pediu vista...
BRITTO - Eu pedi vista do processo porque 16, 17 anos atrás, eu escrevi um artigo que foi publicado em uma revista do TSE já levantando esse tipo de questionamento. Até que ponto a lei pode, a pretexto de implantar um sistema proporcional de votação e apuração, desconsiderar o voto do eleitor e desviar esse voto para quem não o recebeu? A lei, ao que parece, está entrando em contradição ao permitir que partidos e políticos se apropriem de votos que não lhes foram dados.

FOLHA - Não seria esse o caso dos suplentes de senadores?
BRITTO - Pode-se discutir também se a legislação sobre os dois senadores suplentes é compatível com a pureza do regime democrático representativo. No mínimo, a própria Justiça Eleitoral terá de projetar na tela do computador, da urna eletrônica, a imagem dos dois suplentes e os nomes. O mesmo acontecendo para os vices das chefias executivas.

FOLHA - São mudanças que já podem acontecer nessas eleições?
BRITTO - Já. Porque, no fundo, você vota em três pessoas. Então o eleitor precisa saber: esse senador tem telhado de vidro.

FOLHA - Pode-se dizer que um possível terceiro mandato fere um dos pilares da democracia? BRITTO - A república é uma forma de governo contraposta da monarquia. Enquanto a monarquia é hereditária, a república é eletiva. Logo, na república, a renovação dos quadros dirigentes é uma necessidade. Ora bem, se você possibilita a renovação de mandatos, você golpeia a república nesse seu elemento da renovação dos quadros dirigentes. Quanto mais você prorroga um mandato, mais se aproxima da monarquia e se distancia da república. O pior de tudo da idéia de outro mandato é que cesteiro que faz um cesto faz um cento. Você permite uma reeleição, já fragilizou a pureza do regime republicano. Depois você tolera uma segunda reeleição. E porque não uma terceira? Aí você perde a noção de limite e teremos uma república no papel e uma monarquia de fato.

FOLHA - E a utilização eleitoral de programas sociais?
BRITTO - É algo que nos obriga a andar sobre um fio de navalha, pois é muito tênue a fronteira do legal e do ilegal. De uma parte, não se pode impedir o governo de governar. De outra, porém, há essa possibilidade da quebra do princípio da paridade de armas eleitorais. Não se pode aprioristicamente dizer que esses programas de governo são eleitoreiros, como não se pode também aprioristicamente cair na fórmula do liberou geral. A Justiça Eleitoral tem que analisar caso a caso.

FOLHA - Ao tratarmos do princípio da paridade de armas, entramos no debate de financiamento de campanha. Qual sua visão sobre o tema?
BRITTO - Victor Hugo [escritor francês] disse o seguinte: nada é tão irresistível quanto a força de uma idéia cujo tempo chegou. O financiamento público de campanha é uma idéia cujo tempo chegou. Chega de caixa dois. Porque caixa dois é caixa-preta. É espaço do subterfúgio.

FOLHA - E sobre voto obrigatório?
BRITTO - Sou a favor do voto facultativo. Porque ele não faz do ato de votar um peso. Faz com a noção de dever natural, cívico.

FOLHA - E se os insatisfeitos deixarem de votar e prevalecer o voto de quem ganha favores de candidatos?
BRITTO - Não é mais o eleitor vítima. É cúmplice. O processo eleitoral é como um concurso. Os candidatos são os políticos e os examinadores, os eleitores. Se passam nesse concurso maus candidatos, é porque os examinadores permitiram.

FOLHA - O sr. gosta de usar metáforas, citar escritores. Está para lançar seu sétimo livro de poesia. Como é mesclar vida de poeta e jurista?
BRITTO - Sou poeta antes mesmo de ser jurista. Quando assumi no Supremo decidi não deixar esse meu lado jurista passar por cima do poeta. A linguagem jurídica tradicional é muito fechada. Além de posuda. Quando permeada de literatura, ganha em clareza, beleza e, por conseguinte, fica atraente.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Entrevista coletiva de Gilmar Mendes

O novo Presidente do Supremo, Ministro Gilmar Mendes, concedeu entrevista coletiva à imprensa ontem, dia 24 de abril. Prometeu fazer uma gestão transparente do Tribunal com acesso franco aos órgãos de comunicação. Durante a entrevista, o Ministro não "correu" de nenhum tema mais espinhoso sem, no entanto, antecipar juízo sobre assuntos que ainda estão na pauta de julgamentos do Tribunal. Selecionei abaixo dois trechos da entrevista em que se discute a questão da judicialização da política. Confira.

Como o senhor pretende lidar com essa tensão criada nesses casos como da fidelidade partidária?

Gilmar Mendes: As situações são um pouco diversas, mas há algum tempo o país experimenta o debate da reforma política. Esse debate vinha sendo desenhado, mas por razões que nós conhecemos, acabou por não sair. Essa reforma política tinha como elemento central dar maior densidade programática e consistência aos partidos. O Tribunal já fora um pouco crítico do quadro de infidelidade partidária quando decidiu o tema em 1989. Os senhores devem se lembrar, quatro votos, dentre os quais o do ministro Celso de Mello, se pronunciaram no sentido de que a fidelidade partidária continuava a estar prevista no direito constitucional e deveria dar ensejo apenas à perda do mandato. Ao longo de todos esses anos passou a acontecer uma prática de cooptação. As eleições se realizavam de forma aberta em um sistema pluripartidário. Mas, encerrado o processo eleitoral, logo após a diplomação começava o fenômeno de cooptação. Qual a conseqüência disso para a democracia? É a distorção do próprio resultado eleitoral. Foi essa a avaliação que o Tribunal fez. Entendeu que o principio democrático estava sendo comprometido e fez uma rescisão de sua própria jurisprudência. E acabou por produzir também uma sentença de perfil aditivo ao dizer que enquanto o Congresso Nacional não regular o procedimento de perda de mandato, valerão as resoluções estabelecidas pelo Tribunal Superior Eleitoral. O Supremo fez uma ponderação e entendeu que o modelo democrático estava sendo comprometido com este processo que se tornara comum, quase que natural, de pessoas mudarem seqüencialmente de partido. Vimos que alguns parlamentares mudavam de três a cinco vezes na mesma legislatura. Isso levava a uma distorção na relação entre governo e oposição. Governadores de Estados que não tiveram um grande apoio nos municípios, no dia seguinte à eleição, conseguiam fazer uma cooptação. Isso produz uma distorção no sistema democrático. O Tribunal viu nisso um risco para o modelo democrático e entendeu que era preciso se pronunciar, especialmente diante de uma reforma política frustrada. Portanto, embora os casos não sejam perfeitamente análogos, aqui cabe uma analogia entre o caso do direito de greve e da fidelidade partidária.

Governo e oposição sempre disputam, no Congresso Nacional, e toda disputa sempre vem parar aqui. O senhor acha que já é hora de governo e oposição dialogarem e chegarem a um consenso, sem precisar de um poder moderador?

Gilmar Mendes: Essa é uma questão interessante, que a gente pode tratar no plano político e no plano filosófico-constitucional. Quando se concebeu a jurisdição constitucional, na década de 1920, se dizia que uma de suas funções era a de proteção da minoria. E assim tem sido nos modelos que se projetaram desde então. Dá-se à minoria a possibilidade de trazer a questão ao judiciário nas ações diretas [de inconstitucionalidade]. Se os senhores olharem o modelo alemão verão a seguinte situação: um terço dos membros do parlamento pode fazer uma ADI. Entre nós, basta um representante de um partido político — porque a legitimação é do partido político, com representante no Congresso Nacional. Muitos temas poderiam realmente ser tratados no âmbito do próprio Congresso Nacional. Matérias de caráter regimental, disciplinas específicas. Agora, eu não lamento que haja essa provocação do STF, mesmo pelos partidos políticos.
Por exemplo, a questão da CPI dos Bingos. Se ficasse nas mãos da maioria não teria havido a instalação da CPI. E não só me referi à CPI dos Bingos, também referi ao direito da oposição de poder requerer CPI. Nesse caso a judicialização foi correta, porque diante do impasse ou do massacre que a maioria teria sobre a minoria, o STF deu uma resposta. No modelo institucional desenhado há essa possibilidade. Um maior uso, ou menor, depende realmente dessa maior capacidade de consenso, ou dessa maior incapacidade de consenso. Creio que nos últimos tempos nós temos vivido mais, essa tendência de incapacidade para o consenso, mesmo quanto à norma de organização e procedimento. Porque não se trata de chegar a um consenso sobre as matérias de fundo, em geral, não se trata de um consenso quanto ao aspecto base, mas quanto a regras e procedimentos. Diante desses impasses, eu acredito que o Tribunal acaba sendo chamado para resolver de forma legítima. Se houver questão constitucional relevante, o Tribunal há de se pronunciar.

Leia a íntegra da entrevista do Ministro Gilmar Mendes, aqui.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Posse de Gilmar Mendes na Presidência do STF

(...)

É por isso que posso afirmar, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte — que não se curva a ninguém nem tolera a prepotência dos governantes nem admite os excessos e abusos que emanam de qualquer esfera dos Poderes da República — desempenha as suas funções institucionais e exerce a jurisdição que lhe é inerente de modo compatível com os estritos limites que lhe traçou a própria Constituição.

Práticas de ativismo judicial, Senhor Presidente, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade.

A omissão do Estado — que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.

O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República.

Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.

De outro lado, Senhor Presidente, a crescente judicialização das relações políticas em nosso País resulta da expressiva ampliação das funções institucionais conferidas ao Judiciário pela vigente Constituição, que converteu os juízes e os Tribunais em árbitros dos conflitos que se registram na arena política, conferindo, à instituição judiciária, um protagonismo que deriva naturalmente do papel que se lhe cometeu em matéria de jurisdição constitucional, como o revelam as inúmeras ações diretas, ações declaratórias de constitucionalidade e argüições de descumprimento de preceitos fundamentais ajuizadas pelo Presidente da República, pelos Governadores de Estado e pelos partidos políticos, agora incorporados à “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, o que atribui — considerada essa visão pluralística do processo de controle de constitucionalidade — ampla legitimidade democrática aos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive naqueles casos em que esta Suprema Corte, regularmente provocada por grupos parlamentares minoritários, a estes reconheceu — pelo fato de o direito das minorias compor o próprio estatuto do regime democrático — o direito de investigação mediante comissões parlamentares de inquérito, tanto quanto proclamou, em respeito à vontade soberana dos cidadãos, o dever de fidelidade partidária dos parlamentares eleitos, assim impedindo a deformação do modelo de representação popular.

(...)



Ministro Celso de Mello

domingo, 9 de março de 2008

Chega de trevas!

Por que este debate sobre a Lei de Biossegurança está carregado de disputas ideológicas, religiosas e filosóficas, além dos aspectos apenas jurídicos?


No meu voto, chamei a atenção para a relevância ética, religiosa e filosófica, além de jurídica, dessa causa. É uma matéria sensível nos três campos. As diversas confissões religiosas têm o direito de participar desse debate, porque a sociedade é plural. O que não se pode é impor um ponto de vista a ponto de obstar legítimas políticas públicas e estatais. O debate é a sadia convivência dos contrários. Essa decisão do Supremo já nasce com legitimidade pelo envolvimento da sociedade neste debate. Pluralismo é o nome que a democracia toma quando vista do ângulo da convivência dos contrários. No mundo inteiro, o próprio catolicismo se divide quanto a esses tabus. Onde se encontra um bloco monolítico, fechado, contra o aproveitamento terapêutico-científico das células-tronco embrionárias, existe um fenômeno de cúpula, de dirigentes da igreja que fecharam questão. Não os católicos em geral. Isso também quanto ao aborto e à eutanásia.

Como o senhor, que tem formação católica, se livrou da polêmica religiosa em torno da Lei de Biossegurança?

Transito por estes expoentes da espiritualidade sem fechar com nenhum em particular. Rendo homenagens a São Francisco de Assis, um homem depurado, por exemplo, mas me deparo com Buda e encontro um líder espiritual portentoso. E não vou minimizar o papel de Buda perante Cristo. Os dois foram gigantescos. Além disso, uma coisa é Cristo. Outra é uma organização em torno dele. Uma coisa é Buda. Outra são as organizações em torno dele. Prefiro ver Cristo e Buda diretamente, sem as igrejas que se estruturaram historicamente e que cultuam suas mensagens.

O STF tem pela frente temas tão polêmicos quanto este, a exemplo do aborto para casos de anencefalia e união civil homossexual, eutanásia e até o próprio aborto. A polêmica vai se repetir?

Certos temas tidos pela sociedade como tabus são evitados porque não podem ser vistos de frente como o sol a pino. Mas uma sociedade democrática evolui no sentido de trazer tudo a lume. Não pode haver tabus temáticos em uma democracia consolidada. Este julgamento faz parte de um processo de evolução democrática que estamos maravilhosamente vivendo. Eu recebi para relatar o processo que trata da lei que regula as relações homoafetivas. Um dia, o Supremo iria se debruçar sobre esse tema. Não se pode mais escamotear nada. Essa aurora institucional que dizem estar vivendo o Supremo é conseqüência do processo democrático. Quando se tem liberdade de expressão, os tabus acabam. Isto é bom, é o antiobscurantismo. O direito brasileiro está do lado dos que sofrem e não do sofrimento.

O senhor acha que no Brasil há excesso de leis conservadoras que reforçam os tabus?

Este fenômeno existe, mas não o endosso da Constituição. Pelo contrário. Isto ocorreu porque a Assembléia Nacional Constituinte produziu um documento que é melhor do que a própria assembléia que o elaborou. A obra é melhor do que seu autor. Há no Brasil um descompasso normativo entre o direito comum e o direito constitucional. A Constituição é mais avançada do que o direito ordinário. O que nos cabe como ministros do Supremo é dar um banho de Constituição no direito ordinário para que ele se atualize e corresponda ao sentido de liberdade das nossas vidas.

Por que há este descompasso entre a Constituição, o conjunto de leis ordinárias e a vida real no Brasil?

Isto ocorre porque a Constituição está muito mais próxima da vida real do que o direito ordinário. A crítica de que a Carta Magna seja muito extensa e com artigos desnecessários é descabida. O texto deve ser celebrado como um documento enxuto e contemporâneo, no sentido da atualidade e valores que consagra. Tanto que as cláusulas pétreas, tão injustamente criticadas, significam uma proibição de retrocesso. Nós avançamos tanto na Assembléia Constituinte que foi preciso garantir esse avanço e impedir o retrocesso. Eu estou convicto de que a Constituição tem que ser vista com um novo olhar, de reverência e gratidão. O que está faltando é um novo olhar sobre o direito brasileiro, na perspectiva dos maravilhosos valores que as Constituição consagrou. Vou dizer dois: plenitude democrática e liberdade de expressão.

O STF está afinado com o pensamento da sociedade?

Deve estar, sim. O doutor Dráuzio Varella, que é um incontestável cientista respeitado, disse que a medicina celular vai cumprir no século 21 a mesma revolução que o antibiótico tempos atrás. Isto é uma visão de homem contemporâneo. O Victor Hugo (escritor francês do século 19) disse que “nada é tão irresistível quanto uma idéia cujo tempo chegou”. E chegou o tempo da medicina celular. Goethe morreu pedindo luz, mais luz. Claro que ele estava falando de luz não pensando no sol tropicalista, caribenho ou nordestino, e sim na luz da consciência. E nós vamos querer mais trevas, mais trevas e ainda mais trevas agora? Chega de trevas.

O senhor procurou exaltar o papel da mulher neste debate?

Noto que subjacente às teses religiosas e científicas de que o protagonista central do processo de hominização é o útero, está a exaltação da mulher. Distingo, no meu voto, a gravidez da maternidade. E digo que na barriga de aluguel, com certeza, há uma gravidez, mas é de se supor que não haja maternidade. Na maternidade consentida, querida, há um aporte de bem querer que cumpre um papel criativo, que vai plasmar a personalidade de uma futura pessoa. É de se supor, então, que na sua opinião é legitimo e legal uma mulher grávida que não quer ser mãe interromper a gestação? Eu não quis, por enquanto, antecipar o debate sobre o aborto. Porque não estava em causa e, depois, quando se abre o leque de controvérsia, perde-se o foco e o poder de convencimento enfraquece. O foco da questão é: os embriões produzidos in vitro, quando destinados à pesquisa científica e à terapia humana, sofrem uma violência tal que corresponde a um aborto? Eu respondi que não. Tenho dito que, para mim, a vida humana, já adornada do fenômeno da personalidade, é um fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral. A vida civil, no conceito de pessoa. Para convencer, tive que fazer as distinção entre embrião, feto e pessoa. Se isso sugere uma antecipação do debate sobre o aborto, não foi a minha intenção.

Há críticos que apontam vários defeitos na Lei de Biossegurança.

Isto é fugir do foco do debate. O que devemos fazer é saber se o conjunto normativo da lei, que é o artigo 5º, é compatível ou não com a Constituição. Procurar outros defeitos ou virtudes na lei não está em causa. Na parte que estamos analisando, a lei é adequada, ponderada e necessária. Não analisei a lei como um todo porque o artigo sozinho já é um mundo. É quase uma nanojurisprudência e exige uma nanodecisão.
Entrevista do Ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, ao jornal Correio Braziliense de 9.3.08. Foto: José Varella.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Quando começa a vida?

ConJur — A pesquisa com células-tronco embrionárias é constitucional?

Cláudio Fonteles — Não. A pesquisa tem de ser declarada inconstitucional para fazer valer duas normas da Constituição: o inciso III, do artigo 1º, que, como princípio fundamental, diz que os brasileiros devem construir uma sociedade em que a dignidade da pessoa humana seja ponto central; e o artigo 5º, que consagra o princípio da inviolabilidade da vida humana como direito individual. A vida humana começa na fecundação, no momento em que o espermatozóide se encontra com o óvulo. A partir daí, já há vida e esta não pode ser violada.

Luís Roberto Barroso —Sim. A pesquisa é disciplinada pela Lei de Biossegurança de forma totalmente compatível com os valores fundamentais da Constituição. A lei prevê que só podem ser utilizados nas pesquisas com células-troco embrionárias os embriões excedentes de procedimentos de fertilização in vitro e que sejam inviáveis ou que estejam congelados há mais de três anos. Além disso, a lei exibiu grande preocupação ética proibindo a clonagem humana, seja terapêutica, seja reprodutiva, e proibindo também o comércio de embriões. Portanto, é uma lei que disciplina adequadamente as pesquisas sem violar nenhum bem jurídico constitucional.

ConJur — Quais os direitos de um embrião? O embrião tem personalidade jurídica?

Cláudio Fonteles — O embrião tem direito constitucional à vida e expectativa de direitos civis. Para ter personalidade jurídica, tem de ter nascido, conforme estabelece o artigo 2º do Código Civil. No entanto, o embrião é um nascituro, cujos direitos são preservados por lei. É importante ressaltar que a minha posição impede apenas uma linha de pesquisa que significa matar pessoas. Não se pode matar uma pessoa para curar outra. Ficam abertos outros campos de pesquisa, como as com células retiradas do cordão umbilical e células-tronco de adultos.

Luís Roberto Barroso — Pelo Direito brasileiro, a personalidade jurídica começa a partir do nascimento com vida. O Código Civil protege, desde a concepção, o nascituro. Mas é importante fazer uma distinção: nascituro é o ser potencial, que se encontra em desenvolvimento no útero materno e cujo nascimento é tido como um fato certo. O embrião do qual falamos não é pessoa, porque não nasceu, e também não é nascituro porque não está implantado no útero materno e seu nascimento não é um fato certo. Pelo contrário. O embrião que está congelado há mais de três anos jamais será implantado no útero materno. Não existia no Brasil uma disciplina jurídica de como tratar os embriões até a Lei de Biossegurança. Ela protege o embrião porque não permite a clonagem e o comércio.

ConJur — A Lei de Biossegurança prevê a pesquisa apenas com células-tronco de embriões produzidos para a fertilização in vitro e não utilizados. No caso de o Supremo julgar a lei inconstitucional, qual será o destino dos embriões não implantados no útero materno?
Cláudio Fonteles — Há hoje, no Brasil, uma pessoa que nasceu de um embrião que ficou congelado por cinco anos. Nos Estados Unidos, há pessoas que nasceram de embriões congelados há 12 anos. Como matar essas pessoas/embriões? Os três anos de congelamento para poder usar nas pesquisas, como estabelece a lei, foram escolhidos de forma aleatória. Todos os embriões fecundados têm de ser usados. A fertilização in vitro deve continuar, mas deve ser limitada. Hoje, prevalece a linha mercantilista que fecunda 600 embriões de uma só vez. Não está certo. A medicina permite que sejam fecundados apenas dois para serem usados. Não se pode autorizar a morte por questões monetárias.

Luís Roberto Barroso — A declaração de inconstitucionalidade da lei não irá modificar em absolutamente nada o destino desses embriões. Eles continuarão congelados, continuarão fora do útero materno e continuarão a não representar uma vida em potencial. Só a resposta a esta pergunta já deveria levar à improcedência da ação.

ConJur — O senhor concorda com o argumento de que o STF determinará quando começa a vida?

Cláudio Fonteles — É isso que eu peço: que o Supremo determine quando começa a vida. Mas, o tribunal pode não responder a essa minha pergunta e encontrar outra solução para a problemática.

Luís Roberto Barroso — Não há nenhum sentido nessa afirmação. Nós não estamos falando em vida. Nós estamos falando de embriões congelados que não serão implantados no útero materno e, portanto, não se tornarão vida. Não há resposta para a pergunta “quando começa a vida?” porque ela não pode ser respondida pela ciência ou pela biologia. Essa é uma questão filosófica e de fé. E a fé habita o espaço da vida privada, não o espaço público onde se produzem as decisões dos tribunais. A pergunta correta a ser respondida pelo Supremo é: “O que fazer com os embriões que já existem e estão congelados há mais de três anos?”. É melhor deixá-los perenemente congelados até o momento do descarte ou é melhor destiná-los à pesquisa científica, permitindo que eles tenham o fim digno de contribuir para a ciência, para a diminuição do sofrimento de muitas pessoas e para salvar vidas? Está é que é a pergunta certa a ser respondida pelo Supremo Tribunal Federal.

ConJur — A decisão do Supremo pode afetar outras questões, como o uso da pílula do dia seguinte e a discussão sobre o aborto?

Cláudio Fonteles — Pode sim ter repercussões nestas outras questões, mas é preciso ter calma nas comparações. Se o Supremo decidir pela proibição das pesquisas com células-tronco embrionárias, isso não vai interferir nos casos em que o aborto é permitido. O Código Penal permite o aborto quando há risco de vida para a mãe e quando o feto é fruto de estupro. No primeiro caso, busca-se preservar a vida da mãe. É uma escolha entre a vida da mãe e do feto. No segundo, é o chamado aborto sentimental. Permite-se a retirada do feto pela dor intensa que ele gera na mãe. Quanto à pílula do dia seguinte, se ela significa matar embrião, aí sim será proibida com uma possível decisão do STF.

Luís Roberto Barroso — Não. A discussão sobre aborto, por exemplo, que é freqüentemente associada a esse debate, é totalmente impertinente. Na discussão sobre o aborto — que é importantíssima e deve ser travada no país — estão presentes outras reflexões jurídicas e éticas distintas destas das pesquisas das células-tronco. O que não faz uma questão mais importante do que a outra. Mas sim uma questão diferente da outra.


Revista Consultor Jurídico, 4 de março de 2008

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

"Em matéria eleitoral, vale é a idéia de limpeza ética."

Leia a entrevista concedida para os jornalistas Carolina Brígido, Alan Gripp e Diana Fernandes, do jornal O Globo:


O Globo — O senhor considera a Justiça Eleitoral capacitada para coibir crimes cometidos pelos candidatos em campanha?
Carlos Britto — Sim. Mas o gênero humano é pródigo no arranjo de fórmulas espúrias. A criatividade no campo da ilicitude é infinita. A cada momento nos deparamos e nos surpreendemos com formas inéditas de burlar nossa fiscalização.
O Globo — O que o juiz pode fazer para melhorar a Justiça Eleitoral?
Carlos Britto — Interpretar a legislação cada vez mais à luz da Constituição. Uma das questões mais debatidas ano passado foi a fidelidade partidária. A Constituição, que quer e exige fidelidade, faz do partido protagonista do processo eleitoral. Não há candidatura autônoma. O partido investe no candidato, o seleciona em convenção, abona o nome dele e cede espaços de propaganda para ele. De repente o eleito dá as costas ao partido com o mandato embaixo do braço. Acabamos com essa farra.
O Globo — Como eliminar o caixa dois?
Carlos Britto — Uma das formas é instituir o financiamento público de campanhas. Seria fundamental. Mas é possível fazer isso no plano jurisdicional. O TSE tem que entender que caixa dois significa abuso de poder econômico e causa perda de mandato. O tribunal está começando a ver dessa forma.
O Globo — Apesar de a lei permitir, o senhor concorda que pessoas com problemas na Justiça
possam se candidatar?
Carlos Britto — Não. A norma jurídica nem sempre se manifesta por explicitude. Também se manifesta por implicitude. Em 2006, o TRE do Rio negou registro a Eurico Miranda como candidato a deputado federal, dizendo que ele respondia a um número tão grande de processos que evidenciava vida pregressa incompatível com a pureza que se exige do candidato. Concordo. Fiz um voto longo. Acabei vencido, mas dois ministros me acompanharam. A decisão foi por 4 a 3 no TSE. Ele andou dizendo que eu devia ser flamenguista. Logo eu, que sou vascaíno antes dele!
O Globo — Isso não fere o princípio de que uma pessoa só é considerada culpada quando julgada em última instância?
Carlos Britto — Há um direito constitucionalmente assegurado, que é a presunção de não culpabilidade enquanto não haja sentença penal condenatória definitiva. Mas é em matéria penal. Em matéria eleitoral, vale é a idéia de limpeza ética. Quem não tem o passado limpo, quem não tem vida pregressa pautada na ética, não tem qualificação para representar o povo.
O Globo — A pessoa teria que ter condenação pelo menos em primeira instância, como Eurico?
Carlos Britto — Tem que ter. Mas isso tem que ser analisado caso a caso.
O Globo — São muitos os candidatos com problemas na Justiça...
Carlos Britto — Chamo isso, com todo o respeito, de interpretação leniente da Justiça, interpretação frouxa. Não está conforme o rigor da Constituição. A Justiça Eleitoral, quando recebe pedido de registro de candidatura, tem o dever de pedir informações sobre a vida pregressa da pessoa. Só pode ser político quem tem vocação para servir a coletividade, ou seja, espírito público.
O Globo — Não seria necessária uma lei para impedir isso?
Carlos Britto — O ideal seria uma nova lei. Mas a falta de lei não significa falta de direito.
O Globo — Não é temerário o Judiciário agir sem lei específica?
Carlos Britto — O legislador é incapaz de prever todas as possibilidades de tramóias. O direito padece dessa fragilidade estrutural. Não tem resposta normativa escrita detalhada para a infinitude das vias de obtenção de um mandato escusamente. Aí o Judiciário entra. Chega um ponto em que tem que partir para interpretações implícitas. Quando você usa os dois lados do cérebro equilibradamente, o da razão e o da emoção, faz um casamento por amor e tem um rebento chamado consciência. Acusam o Judiciário de substituir o legislador. Não é isso. Podemos, com sensibilidade, adquirir novo par de olhos.
O Globo — É possível que governos criem programas sociais em ano eleitoral?
Carlos Britto — Em tese, seria proibido, mas teria que analisar caso a caso. É possível que, a pretexto de implantar uma política social, se esteja desequilibrando a disputa eleitoral. O caso vai dizer.
O Globo — A lei eleitoral permite que políticos cassados há quatro anos sejam candidatos neste ano. Concorda com isso?
Carlos Britto — É uma falha de interpretação. Temos que evoluir na interpretação. O maior teórico do Direito, Hans Kelsen, dizia que o direito legislado é uma moldura aberta: cabe mais de uma interpretação, salvo raras exceções.
O Globo —Pela lei, a punição é de três anos, a contar da eleição em que o ilícito foi cometido.
Carlos Britto — Nunca recebi um processo desses. A primeira vez que receber acho que vou chegar a uma conclusão diferente. Os físicos quânticos observam que a matéria é feita de partículas e ondas que se interagem. O observador atento passa a desencadear reações no objeto investigado. Uma norma jurídica é o meu objeto. Vou conversar com ele, ler com cuidado e entrar num clima de empatia. De repente ele passa a se me dar por um ângulo insuspeitado. Ao nível da interpretação, o Judiciário pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema jurídico. Eu entro num clima dialogal com o texto.
O Globo — Todos os juízes deveriam proceder dessa forma?
Carlos Britto — Muitas vezes, o defeito não é da legislação. E é cômodo para o juiz dizer: “Vou lavar minhas mãos”. Dizem: “Não posso fazer nada”. Pode sim! Releia a lei. Não tenha pressa!
O Globo — O PT que o senhor ajudou a fundar é diferente do de hoje?
Carlos Britto — Sou muito de virar a página. Como toda pessoa que faz meditação oriental, um exercício de presentificação, você aprende a viver no presente. Virei essa página do meu vínculo com o PT.
O Globo — Mas renega esse passado?
Carlos Britto — De jeito nenhum. Foi muito importante para a minha formação, a minha visão de Brasil, o meu compromisso social.

Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2008

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

"Reengenharia institucional do Poder Judiciário"

Valor: Há vários novos mecanismos em discussão ou adotados de forma inédita no Supremo que podem ter impacto em termos de celeridade processual e efetividade das decisões - impacto até maior do que a reforma do Judiciário. De onde surgiram estas novidades?

Gilmar Mendes: Nós temos uma reengenharia institucional do Poder Judiciário que vem se fazendo de forma complexa, também com um diálogo entre o legislador e o Judiciário. A lei da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) - a Lei nº 9.868, que trata também da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) - produziu mecanismos bastante modernos no que concerne à prática de uma jurisdição constitucional. Ela introduziu o artigo 27, que permite a modulação dos efeitos de decisões judiciais e a possibilidade de haver audiências públicas para que o tribunal se informe sobre os fatos legislativos - e isto já ocorreu no caso do uso de células-tronco de embriões em pesquisas. E introduziu também a possibilidade, até então vedada, de participação de terceiros interessados - o chamado "amicus curiae" -, que vem dando uma coloração bastante plural ao processo constitucional.

Valor: Estes dois mecanismos vêm sendo bastante usados?

Mendes: Vêm sendo muito usados e com reflexos inclusive nos processos do chamado controle incidental de constitucionalidade (sobre um fato concreto), e não apenas no controle abstrato (por uma ação própria, como a Adin). No Supremo, ocorreu uma situação interessante. A primeira vez que a modulação de efeitos foi usada, não se tratava de um processo em Adin. Foi o caso da redução do número de vereadores nas câmaras municipais, em que o tribunal entendeu que deveria estabelecer uma orientação no sentido de reduzir o número de vereadores, mas que esta decisão impactaria as câmaras de forma bastante radical, porque retiraria dois, três vereadores de uma câmara, com conseqüências inclusive no processo legislativo e em discussões sobre se determinada lei que foi votada com o auxílio daqueles vereadores seria válida ou não. Então o tribunal optou por declarar a inconstitucionalidade no caso, mas aplicá-la somente para a próxima legislatura, em função destes impactos. O segundo caso em que a modulação foi aplicada foi o da progressão de regime de pena em crime hediondo, quando a situação era outra: o tribunal havia declarado a lei como constitucional. E agora, com uma nova composição, entendeu que a lei é inconstitucional. Se o tribunal nada dissesse provavelmente teríamos um número infindável de pleitos de caráter indenizatório: pessoas que diriam que cumpriram pena em regime integralmente fechado porque não fora contemplada a inconstitucionalidade da não-progressão de pena. Então optou por dizer que ele estava certo à época em que declarou a lei constitucional, e que estava certo agora, quando declarou a lei inconstitucional, e portanto não permitiu a retroação da decisão.

Valor: Esta é uma questão bastante discutida na área tributária: a análise dos efeitos das decisões pelo Supremo. Por que o tribunal começou, de repente, a pensar nestes efeitos, buscando uma saída prática?

Mendes: Nós trabalhávamos com uma idéia básica, que é uma ficção, de muitos modelos de jurisdição constitucional, de que a lei inconstitucional há de ser considerada nula. Na prática sabemos que as coisas não se passam bem assim e que é muito difícil fazer esta depuração total, que o próprio sistema cria mecanismos de proteção dos atos já realizados, da coisa julgada, da prescrição e da decadência, que surgem muito em matéria tributária. Portanto, a retroação nunca se deu de forma absoluta. O tribunal está, portanto, obrigado a fazer esta ponderação em vários casos. E em vários casos ela é fundamental, sob pena de não se viabilizar sequer a declaração de inconstitucionalidade. Se se tiver que provocar um caos jurídico ou uma hecatombe econômica, muito provavelmente o tribunal poderia fingir que a lei é constitucional, porque não quer assumir as conseqüências de uma decisão em sentido contrário. Se nós pensarmos isso em perspectiva histórica, sana-se o problema para o futuro, ainda que contemple-se os efeitos verificados no passado. Em questões tributárias, isto ocorre no mundo todo. A amplitude da jurisdição constitucional brasileira - talvez a mais ampla do mundo - com tantas possibilidades de provocação, torna quase inevitável a modulação de efeitos, sob pena de a toda hora nós podermos produzir impasses institucionais.

Valor: A modulação começou a ser usada recentemente. Ela está ligada à mudança de composição do Supremo ou a uma evolução do tribunal no sentido de passar a pensar no impacto de suas decisões?

Mendes: É preciso analisar o conjunto da obra. Já na Constituinte de 1988 discutiu-se a introdução de um dispositivo semelhante ao do artigo 27 da lei da Adin. Isto não ocorreu e o tribunal, depois disso, decidiu vários casos em que contemplou os efeitos das decisões, mas acabou mantendo o princípio da nulidade. Aí veio o artigo 27 da lei da Adin e, a partir daí, o tribunal passou a enfrentar os vários casos. De um lado, a própria iniciativa legislativa contribui para esta nova reflexão. De outro, a nova composição e o novo pensamento que passou a imperar no tribunal, e esta noção específica de responsabilidade institucional da corte quanto à eficácia de suas decisões. Declarar que é constitucional a demissão de funcionário público sem concurso é fácil, mas dizer que isto vai envolver a dispensa de centenas de servidores e desestruturar o serviço público é muito mais difícil. Esta nova técnica da modulação hoje está pacificada.

Valor: Foi pacificada no caso da fidelidade partidária?

Para que se profira a decisão de caráter cassatório, tem que se produzir uma lei até que venha a futura"

Mendes: A fidelidade partidária é uma outra técnica que também o tribunal vem desenvolvendo e que já se manifestou de alguma forma no julgamento iniciado da greve dos servidores públicos e no caso dos vereadores, que eu tenho chamado de sentenças de perfil aditivo - em que o tribunal rompe um pouco com a postura que tradicionalmente chamávamos de legislador negativo e passa a ser também, ainda que provisoriamente, um legislador positivo, permitindo uma regulação provisória de uma dada situação que reclama disciplina normativa ou regulação. No caso das câmaras, o tribunal, de alguma forma, já avançou para este aspecto ao concitar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a fixar o número de vereadores para a legislatura seguinte. E agora, no caso da fidelidade partidária, não se limitou a fixar a fidelidade, mas criou um procedimento para sua aferição no âmbito do TSE, indicando as bases deste procedimento. É uma típica sentença de perfil aditivo.

Valor: É legislar?

Mendes: Ou regular, o nome que você queira dar.

Valor: Mas não está na competência do Supremo legislar, sua competência é julgar. Por que o Judiciário está legislando?

Mendes: A gente não pode ver este tema por uma perspectiva isolada e nem fora do contexto do direito comparado. Esta é uma prática hoje vigente na jurisdição constitucional no mundo. Não se trata de uma invenção brasileira. É uma tendência. Em geral estas atuações se dão em contextos de eventual faltas, lacunas ou omissões do próprio legislador. Ou às vezes em um certo estado de necessidade. A declaração de inconstitucionalidade reclama uma regulação provisória. Para que se profira a decisão de caráter cassatório, tem que se produzir também uma lei para que se faça a transição entre o passado e o presente e regule o presente eventualmente, até que venha a legislação futura. Pode se perguntar se esta atitude pode ser banalizada. Eu diria que não, mas é um dado inevitável do novo contexto institucional que experimentamos.

Valor: Quando o sr. fala que é uma tendência no mundo, está se referindo a que países? Que experiências existem neste sentido?

Mendes: O das cortes constitucionais alemã, italiana e espanhola. Os italianos produziram ao longo do tempo essas chamadas sentenças atípicas, ou sentenças de perfil manipulativo ou aditivo - como é a situação que o tribunal está a desenhar no caso do julgamento sobre o direito de greve do servidor público, que é uma situação muito específica. O que se tem hoje é a possibilidade de regular isto mandando aplicar a lei de greve; uma omissão continuada do Poder Legislativo; e a existência de greve, dentro de um quadro de lei da selva! Este contexto tem levado o tribunal a fazer estas intervenções minimalistas.

Valor: Todas essas inovações no Supremo acompanham uma recente alteração na jurisprudência da corte. O sr. diria que o tribunal era mais conservador e hoje, com a nova composição, é mais liberal? Mudanças de jurisprudência diante de novas composições são comuns em outras cortes constitucionais?

Mendes: Tenho a impressão de que muitas questões já estavam em curso. Não podemos esquecer que um voto vencido é um germe eventual de uma mudança da jurisprudência. Também não podemos perder de vista que o modelo constitucional brasileiro passou por uma verdadeira revolução sobre a Constituição de 1988. Isto mudou o perfil do próprio processo constitucional como um todo e a corte foi percebendo este novo contexto. A nova composição do Supremo acaba por concluir este processo e a perceber a necessidade de introdução destas inovações. Hoje não conheço nenhuma corte de perfil constitucional no mundo que não pratique a modulação de efeitos. Nós éramos, até aqui, entre as jurisdições constitucionais importantes, talvez o único tribunal que não a conhecia.

Valor: Muitas destas inovações foram levadas pelo sr. ao Supremo. Há um trabalho de convencimento dos ministros para discuti-las?

Mendes: Não se trata de um trabalho pessoal ou individual. Há algum tempo estudo este tema, antes mesmo de ser juiz da corte, onde passei a sustentar estas posições. Mas houve também dificuldade no tribunal. A própria constitucionalidade da lei da Adin teve parte de sua regulação questionada - como o artigo 27, que o tribunal já vem aplicando, mas que tem uma argüição de inconstitucionalidade pendente, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Hoje se percebe que isto é um instrumento universal, que interessa a todos. Por ironia, a própria OAB pode vir a pedir a modulação no caso da Cofins dos prestadores de serviço, o que mostra que tudo depende de como as pessoas estão no filme. A modulação não é um instrumento de um dos lados da controvérsia, é um instrumento universal da jurisdição constitucional. Acredito que hoje a nova composição do Supremo é mais aberta a essas inovações menos formalistas.

Valor: Como no caso da adoção do efeito vinculante imediato, que o sr. sugeriu?

Mendes: Propus que nós encerrássemos esta fórmula vetusta, a meu ver, da suspensão de execução da lei inconstitucional pelo Senado. No controle incidental, o Supremo comunica a decisão ao Senado e o Senado suspende a parte considerada inconstitucional da lei - e aí sim, a decisão passa a valer para todos. Esta foi uma fórmula engenhosa adotada em 1934, mas que está totalmente ultrapassada no atual contexto constitucional, em que uma cautelar em Adin tem eficácia "erga omnes" (validade para todos) e uma decisão do pleno do Supremo, às vezes por unanimidade, depois de anos de tramitação do recurso extraordinário e do processo na Justiça, não tem. Sugeri que nós passássemos a adotar a idéia de que ao Senado só cabe publicar a decisão, mas que ela valeria a partir da declaração de inconstitucionalidade do Supremo.

Valor: O sr. assume a presidência do Supremo em maio do ano que vem. Já tem alguma proposta de mudar regras internas?

Mendes: Já há vários estudos em andamento e uma reforma regimental já está sendo discutida na gestão da ministra Ellen Gracie. Este é um processo que terá continuidade.

Entrevista concedida ao jornal Valor Econômico de 18.10.07