sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Mensalão: posfácio

Folha - Como o sr. se sente após a publicação de trechos de uma conversa ao telefone sobre o resultado do julgamento?
Enrique Ricardo Lewandowski - Estou submetido a um profundo julgamento moral. Entendo agora o sentimento do jurisdicionado que bate às portas da Justiça pedindo uma reparação. O sofrimento moral não é só meu. É da minha mulher, da minha mãe, que tem 91 anos, meus filhos, meus irmãos e meus amigos.
Eu estou envolvido numa trama kafkiana. No primeiro ano de direito da USP, eu mando os meus alunos lerem dois livros: "1984", do George Orwell, e "O Processo", de Kafka. Olha que paradoxo. Eu sou uma pessoa extremamente sensível, preocupada com a preservação da privacidade das pessoas e com a possibilidade de alguém se enredar em um procedimento de natureza kafkiana.
Folha - No livro "O Processo", o personagem Joseph K. sofre um processo que ele não sabe o que é. A matéria de hoje fala sobre uma conversa telefônica que efetivamente existiu. Ela reflete a sua opinião sobre o resultado do julgamento? O sr. acha que os ministros se curvaram diante de uma pressão da imprensa?
Lewandowski - Não, os ministros são absolutamente independentes. Os debates foram públicos, duraram cinco dias. A nação brasileira viu o alto nível técnico deles. Não houve nenhuma interlocução espúria, escusa, de bastidores. Os ministros expuseram o seu ponto de vista de peito aberto. Eu apliquei nesse julgamento 15 anos de magistratura, sete anos de conhecimento do direito penal. Na questão da quadrilha, eu dei um voto calcado em bases profundamente técnicas.
Folha - O sr. já tinha externado essa dúvida naquela conversa com a ministra Cármen Lúcia, mas tinha dito que, salvo engano, não mudaria o seu entendimento.
Lewandowski - Em relação a Delúbio Soares, Silvio Pereira e outros, eu entendi que havia indícios na denúncia de quadrilha. Com relação aos outros, eu entendi que não havia. Entendi tecnicamente que havia indícios contra José Dirceu em relação à corrupção ativa.
Eu espero justiça da imprensa. Eu faço justiça todo dia aqui. Eu espero que a imprensa me faça justiça também.
Folha - Então qual foi o contexto da conversa?
Lewandowski - Foi um desabafo com o meu irmão Marcelo, que me ligou para prestar solidariedade e discordar de algumas posições, me cobrando, como cidadão, falando: 'poxa, Ricardo, como é que você vota assim.' Eu votei com absoluta independência como sempre fiz. Eu não tenho compromisso com ninguém. Não sou filiado a partido político.
O que eu senti é que o STF foi submetido a uma pressão violentíssima da mídia. Flashes espocando, jornalistas na porta da minha casa. O juiz precisa ter tranqüilidade para julgar, como o cirurgião quando faz uma cirurgia. Ele não pode sofrer esse assédio. Eu tenho aqui processos dificílimos, que envolvem a liberdade, a honra, o patrimônio das pessoas.
Folha - Até onde vai o direito à intimidade e onde começa o interesse público. Na troca de e-mails, trata-se da conversa de dois ministros do STF, dentro de uma sessão de julgamento, à qual a imprensa tinha acesso. A imprensa deveria ter tido acesso a isso, lido o teor e descartado? Ou deveria ser fechado e depois se reportava o resultado?
Lewandowski - Eu acho que a imprensa presta um papel relevantíssimo, absolutamente fundamental para a democracia. Sem imprensa livre, absolutamente sem peias, não existe estado democrático. Acho que poucas coisas podem estar submetidas a segredo de justiça. A imprensa deve ter a maior liberdade possível.
No caso da minha comunicação com a ministra Cármen Lúcia, esse é um instrumento de trabalho, interno. Houve dois tipos de vazamento. Um deles é a comunicação que os ministros fazem com a sua assessoria, e isso é comum. À medida que o julgamento vai evoluindo, você pede material sobre jurisprudência. A cabeça do juiz vai sendo feita, graças a Deus, ao longo do julgamento. O juiz não vem com a cabeça feita.
Em segundo lugar, nesse nosso intranet, é comum fazermos brincadeiras com os colegas, até para amenizar as sessões. Todos nós temos apelidos. Eu devo ter apelido também. Fazemos apreciações sobre os trabalhos dos advogados, expressamos dúvidas sobre pontos obscuros. Às vezes, já votamos e pedimos para o colega que vai votar em seguida levantar algum aspecto, para que a gente possa formar a convicção com a mais absoluta isenção.
[No telefonema no restaurante] eu estava com a minha esposa, com quem sou casado há 30 anos. Nunca vi o Kakay [citado na matéria]. Informar o vinho que eu tomei, o que eu comi... Amanhã a imprensa estará fuçando no meu lixo para saber que tipo de remédio estou tomando. Se isso acontecer, é um país onde eu não quero viver e onde não gostaria que os meus filhos vivessem, em que a invasão de privacidade chega a este nível.
Fizeram ilações estranhas em relação aos e-mails que eu troquei com a Cármen. O jantar era em homenagem ao Sepúlveda Pertence, uma grande liderança, um professor de todos nós. Também houve as especulações sobre mudança de voto.
Folha - Mas, ainda que sejam especulações, o sr. não as vocalizou?
Lewandowski - Foi na intimidade.
Folha - Mas o sr. pensa isso, por exemplo, que o julgamento era tão importante a ponto de suscitar um acordo?
Lewandowski - Não, não. Acho que o julgamento era importante a ponto de as pessoas refletirem, mudarem de posição. Acho que as pessoas estavam extraordinariamente submetidas à mídia. Conheço o Eros Grau há 30 anos na faculdade de direito. Ele é professor de direito econômico e eu, de direito do Estado. Tenho o maior apreço e a maior admiração por ele. Conheço a isenção dele. O que eu fiz na minha intimidade foi especular em relação a determinados pontos do julgamento, notadamente a questão da quadrilha, que o STF tem uma jurisprudência consolidada em determinado sentido, que a doutrina tem uma posição muito firme com relação à caracterização desse tipo penal.
Folha - O sr. acha que o STF contrariou a doutrina e a jurisprudência predominantes?
Lewandowski - Não, eu acho que o voto do ministro Joaquim Barbosa foi tão técnico, tão vertical, tão satisfativo, que a sustentação oral do procurador-geral da República foi tão contundente que acabou afastando os argumentos dos advogados. Portanto os ministros com a liberdade que tem, com relação a sua convicção pessoal, acharam que a jurisprudência não se aplicava no caso.
Folha - O que o sr. quis dizer ao afirmar que os ministros votaram com a faca no pescoço?
Lewandowski - Eu falei com relação a mim e falei com o meu irmão, na intimidade. Por isso, posso ter usado um termo tão apropriado. Eu me senti com a faca no pescoço.
Eu me mantive firme, convicto, dei um voto técnico na questão da quadrilha. Ele foi longo, extenso, invocando a Constituição, a lei, a doutrina e a jurisprudência. Com relação ao Delúbio, Silvio Pereira e outros, eu acatei a questão da quadrilha. Com relação à corrupção ativa do sr. José Dirceu, eu acatei. Com relação a lavagem de dinheiro, peculato, eu acatei tudo, ponto a ponto, e justifiquei o meu ponto de vista, para o Brasil todo, em público. Ninguém me telefonou, ninguém me pediu nada. Não conheço ninguém [dos denunciados].
Folha - Houve uma conversa na véspera, para dirimir algumas dúvidas. O sr. acha que havia uma dúvida maior em relação ao enquadramento do ex-ministro José Dirceu, já que o sr. disse que a tendência era "amaciar"?
Lewandowski - Primeiro, eu não sei se usei essa palavra 'amaciar'. Pode ser, sinceramente eu não me lembro. Mas eu acho que amaciar é no sentido de que, pela avaliação que eu tinha, não que nenhum ministro tenha antecipado o voto, pelo contexto probatório, pelo histórico jurisprudencial da Casa, pelas conversas informais que se têm, pela apreciação que se faz do caso, eu achei que determinados pontos da denúncia cairiam pela inconsistência. Prevaleceu a opinião soberana de cada ministro, convencido pela sustentação oral do procurador-geral e pelo belíssimo voto do ministro Joaquim Barbosa [relator].
Eu demonstrei a mais absoluta independência. Apesar de estar fragilizado pelo vazamento das minhas comunicações privadas, eu me mantive firme às minhas convicções.
Folha - O sr. acha que o resultado foi alterado pela divulgação das mensagens?
Lewandowski - Absolutamente não. Eu achei que o julgamento ficou mais tenso, os ministros votaram evidentemente com mais cuidado, justificaram as suas posições com mais detalhamento.
É do interesse da sociedade brasileira que nós não transformemos o julgamento do STF em um julgamento dos anos 30 de Moscou, da época stalinista, um mero chancelador das denúncias do procurador-geral ou do voto de um ou outro ministro ou mesmo da opinião da imprensa.
Hoje, a imprensa me critica porque fiquei isolado num voto em que tive convicção. Mas amanhã ela talvez vá precisar de um tribunal independente e que tenha pessoas, como eu e outros ministros, com a coragem de colocar as suas posições, mesmo que sejam antipáticas perante a opinião pública.
Se eu não puder fazer isso, por Deus do céu, eu prefiro ir embora. Nós precisamos de tranqüilidade para votar. Não podemos, a cada despacho, cada prisão que determinamos, cada habeas corpus que concedemos, não podemos ser questionados sobre o interesse que existe por trás daquela decisão. Não é possível esse tipo de ilação.
Folha - O sr. acha que o sistema brasileiro de nomeação de ministros suscita uma certa dúvida em relação à independência?
Lewandowski - Absolutamente não. A pessoa para chegar ao STF tem a sua vida vasculhada, devassada. Vocês acham que o presidente da República, o ministro da Justiça, vai correr o risco de indicar alguém que não tenha notável saber jurídico e reputação ilibada? vocês acham que a vida da gente não foi vasculhada? Que o Senado, que representa a nacionalidade, no crivo que faz dos ministros, não fez toda essa apreciação?
Imaginem vocês se eu não fosse vitalício hoje, como eu estaria pressionado por A, B, C ou D. Curiosamente antes de vir para cá, até defendi a tese de que os ministros deveriam ter mandato, como tem nas cortes constitucionais européias. Eu me sinto diante de uma extraordinária pressão, que é violentíssima. Se você não tiver uma garantia de vitaliciedade, sucumbe.
Eu estou consciente de que hoje estou apanhando muito da imprensa, porque dei um voto contrário à opinião pública, mas é preciso haver vozes dissonantes num tribunal como esse. Assim como existe a mais ampla liberdade de imprensa, e sou favorável a ela até o último momento, acho importante também que o Judiciário tenha a mais irrestrita possibilidade de julgar de forma absolutamente independente, porque não podemos fechar as portas e rasgar a Constituição.
Folha - No telefonema, o sr. afirma que é amigo do ministro indicado Carlos Alberto Direito e que seria ele, porque havia uma campanha aberta pelo nome dele. Isso já tinha sido um tema da conversa com a ministra Cármen. Esse processo teve alguma relação com o julgamento do mensalão, pela premência do prazo para ser nomeado?
Lewandowski - O ministro Direito, isso você pegou muito bem. Ele é um ministro exemplar. Eu até disse a Cármen que ele vai dignificar o STF. Ele tem todas as qualidades para ser um grande ministro. Eu digo que é uma honra, vai engrandecer o STF. Eu conheço o trabalho dele. Fui um dos primeiros a incentivá-lo a postular o cargo, porque somos colegas no TSE. Eu lhe disse que ele tem o perfil para ser ministro do STF, é um homem probo, de grande saber jurídico, grande experiência profissional.
Folha - O STF está dividido em grupos?
Lewandowski - Não, absolutamente não. Aqui não existem grupos. As votações revelam isso. Por vezes, o ministro Gilmar Mendes votou comigo, que poderia eventualmente ser de outro grupo. O ministro Eros também. Claro que há simpatias, maiores afinidades. Eu tenho mais amizade com uns. Eu fiz uma amizade belíssima, extraordinária com o Joaquim Barbosa, logo que entrei. Fiz uma amizade extremamente cordial com o ministro Carlos Britto, que é um gentleman, um poeta, um homem de uma sensibilidade extraordinária. A Cármen Lúcia foi minha colega de pós-graduação em SP. A ministra Ellen em conheço de muito tempo.
Folha - O sr. acha que o fato de o STF nunca ter condenado nenhuma autoridade faz com que essa pressão que o sr. enxerga se potencialize e crie um certo ceticismo quanto às decisões nas questões penais?
Lewandowski - A ministra Ellen esclareceu bem [no final do julgamento]. É muito recente a mudança na Constituição que permitiu ao STF abrir ações penais sem autorização do Congresso Nacional. Além disso, essas ações são complexas, distintas das ações cíveis, dos mandados de segurança. Nesse tipo de ação, em que está em jogo a liberdade, é preciso realmente fazer um exame muito cuidadoso da prova, testemunhal, documental, pericial.
Em segundo lugar, os processos que tramitam no STF envolvem muitos réus, que mesmo na primeira instância levariam anos para resolver. mas não tenham dúvida de que o STF vai cumprir o seu papel.
Folha - O sr. acha que é a corte adequada para o julgamento?
Lewandowski - Não, eu sou em princípio contra o foro privilegiado. Acho que, salvo em circunstâncias absolutamente excepcionais, como no caso das mais altas autoridades do país, acho que contraria o princípio do juiz natural e da igualdade entre os cidadãos. Uma dessas autoridades é o presidente da República. Também não acho que um juiz de tribunal superior possa ser julgado por juiz inferior, do qual reviu sentenças.
Tenho também a convicção de que certos crimes praticados antes da assunção dos mandatos dos parlamentares não podem ser julgados aqui no STF.
Folha - O ex-ministro José Dirceu está dando uma entrevista agora em São Paulo, na qual questiona o resultado do julgamento a partir da publicação dessas declarações e das anteriores. O sr. acha que tem alguma possibilidade de se arguir a nulidade do julgamento?
Lewandowski - Não. O julgamento foi público, foi fundamentado tecnicamente. Todo mundo colocou o seu ponto de vista, não há essa possibilidade.
Folha - Qual é a sua previsão para duração do processo?
Lewandowski - Ele é complexo. Vai levar alguns anos, mas acho que está em muito boas mãos. O ministro Joaquim Barbosa demonstrou absoluta firmeza, competência e sensibilidade na condução desse processo e acho que ele chegará a bom termo.
Folha - O ministro Eros Grau cogita a possibilidade de interpelação judicial do sr. e da ministra Cármen Lúcia sobre o teor daquela conversa.
Lewandowski - Eu lamento. Conheço o ministro Eros Grau e o admiro há longos anos. Tenho sempre manifestado que ele é um magistrado absolutamente isento e competente. Ele deve tomar as medidas que ele achar convenientes. Eu responderei com a maior tranqüilidade. Em nenhum momento eu coloquei a honorabilidade dele em xeque.
Folha - O sr. gostaria de colocar alguma questão?
Lewandowski - Estou profundamente magoado, atingido. Eu sinto a dor moral das pessoas que têm a sua privacidade, a sua intimidade exposta ao público, uma vida, uma carreira de dedicação ao direito e à justiça abalada a partir de ilações que se possam fazer relativamente a considerações que fiz no âmbito privado, com uma colega de trabalho e com o meu irmão, onde eu estava absolutamente indefeso, desguarnecido, enfim desprotegido.
A imprensa e os meios de comunicação não podem ser os únicos árbitros do tênue limite que separa o público e o privado. Nesse episódio da divulgação dos e-mails, talvez a imprensa pudesse ter aguardado um pouco mais o término do julgamento.
Eu estou sendo injustamente envolvido numa trama kafkiana. No primeiro ano de direito da USP, eu mando os meus alunos lerem dois livros: "1984", do George Orwell, e "O Processo", de Kafka. Olha que paradoxo. Eu sou uma pessoa extremamente sensível, preocupada com a preservação da privacidade das pessoas e com a possibilidade de alguém se enredar em um procedimento de natureza kafkiana.


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