segunda-feira, 30 de abril de 2007

O Direito Achado na Rua

Antes de lecionar a matéria Direito Eleitoral, fui professor durante quase doze anos da matéria Introdução ao Direito. Corria o ano 2000, quando um grupo de alunos da Faculdade IESB aqui de Brasília pediu uma entrevista comigo para um trabalho da disciplina Sociologia Jurídica, ministrada pela professora Dulce Suassuna. O tema do trabalho era o "projeto" da UnB intitulado O Direito Achado na Rua. Selecionei alguns trechos da entrevista para esta postagem. É bom rever as próprias idéias. Melhor ainda é compartilhá-las.


Poderia nos dar uma idéia geral sobre sua visão do Direito Alternativo?

Mauro Noleto- Em primeiro lugar é preciso dizer o seguinte: há uma grande confusão conceitual. Quando se diz que Direito Achado na Rua é Direito Alternativo, devo fazer uma primeira observação distintiva. No Brasil, a expressão Direito Alternativo refere-se, no terreno institucional, ao movimento de juizes do Rio Grande do Sul que, cansados da ação conservadora do Judiciário, e levando em conta o impacto dos grandes conflitos de classe, de gênero, de posições na sociedade, decidiram eles próprios posicionarem-se, decidiram admitir sua posição política favorável àqueles considerados oprimidos, espoliados ou excluídos. E de dar essa diretriz política nas suas decisões. Entretanto, não se pode considerar esse movimento como exclusivamente doutrinário, ou científico, mas essencialmente POLÍTICO, de inversão dos aspectos dominadores presentes na legislação oficial, pela utilização de uma interpretação que explora as contradições do ordenamento, principalmente pelo recurso aos princípios vagos do direito constitucional, ampliando essas contradições e possibilidade, mas sem fugir desse plano normativo, salvo nos casos, bastante raros, dos julgamentos contra legem. Nesse caso, é preciso considerar que nem todos os conflitos terão o caráter de luta de classes decorrentes da estrutura capitalista (família, consumidores ricos e vulneráveis, questões ligadas às garantias liberais do processo, principalmente em matéria penal, etc.).

O juizes gaúchos, entretanto, não inventaram nada. Na verdade, no caso desse movimento, é mais correto falar em “Uso Alternativo do Direito”. Segundo o Dicionário Arnaud essa expressão diz respeito à “corrente doutrinária e da práxis jurídico-política, geralmente de inspiração marxista, que sustenta a natureza política do direito, seu caráter de classe, e que admite a possibilidade de sua interpretação e de sua aplicação contra os interesses da classe dominante e a serviço das classes oprimidas”. Os antecedentes históricos do conceito remontam ao movimento de juristas italianos da década de setenta, que consagraram essa expressão, partindo de convicções ideológicas, destacando-se entre estes Pietro Barcelona e o movimento de juizes denominado Magistratura democrática.

Com efeito, já havia uma discussão teórica desde o século XIX, que teve maior repercussão no começo do século XX, segundo a qual o Direito era uma livre criação do Juiz, conforme suas convicções políticas, morais, etc. Essas correntes rompem a tradição iluminista da Escola da Exegese, cuja crença na objetividade e completude da lei codificada reservava para o juiz um papel quase mecânico: pronunciar as palavras da lei.

Mais recentemente, no contexto das ditaduras militares, dos regimes políticos injustos, ilegítimos, foi se desenvolvendo um movimento de reação a essa legalidade institucional considerada ilegítima. O problema é que todos os movimentos, teóricos ou não, nesse sentido acabam sendo levados para debaixo do rótulo “Direito Alternativo”, inclusive o “Direito Achado na Rua”, que não é um movimento institucional, é um movimento teórico, de professores e pesquisadores, que foi liderado na década de 80 pelo Professor Roberto Lyra Filho, na Universidade de Brasília, que criou um movimento chamado “A Nova Escola Jurídica Brasileira”. Não tinha ainda esse nome de Direito Achado na Rua. Era a Nova Escola Jurídica Brasileira que congregava professores de Direito e de outras áreas, e que divulgava suas reflexões numa revista chamada “Direito e Avesso”, na virada dos anos 70 para a década de 80. Com a morte do Professor Lyra Filho, em 1986, o Professor José Geraldo de Sousa Jr., da UnB, organizou um projeto, inspirado no desejo do próprio Lyra Filho de criar um curso de Introdução ao Direito, que ele chamaria de “O Direito Achado na Rua”. Segundo o professor Lyra Filho é preciso buscar a raiz do fenômeno jurídico não apenas na lei, mas no cenário histórico em que ele se manifesta, onde ele acontece, na rua, que é o espaço público onde os conflitos se dão e onde as formas de síntese, superadoras dos conflitos, numa perspectiva dialética, revelam o constante movimento de criação e recriação dos padrões de emancipação e de convívio social organizado com base na liberdade. Ou seja, a rua, o espaço público, é o lugar de surgimento do direito. Essa que é a origem do Direito Achado na Rua.

E eu não acho que esse rótulo de Direito Alternativo para o Direito Achado na Rua seja correto. Eu, por exemplo, não me considero alternativista. Porque na minha visão, que é nessa linha do Direito Achado na Rua, o problema não é dizer que há um Direito dos oprimidos e um Direito dos opressores. O problema é dizer que nessa tensão é preciso tentar achar “o Direito”, e não um direito e outro, alternativo àquele. A pergunta é sempre aquela: “o que é Direito”, independente de ser legal ou de ser social.

Resumindo, eu diria que a expressão direito alternativo transformou-se num rótulo, ou estereótipo e, como todo estereótipo, ela evidencia determinados aspectos da realidade a que se refere, mas oculta outros, deixando-os na sombra. Ela evidencia a insatisfação com o pensamento e a prática excessivamente formalistas e pretensamente neutras no direito, denunciando seus aspectos ideológicos. No entanto, induz a uma certa polarização maniqueísta entre o falso e o verdadeiro direito, resultando numa compreensão limitada do fenômeno jurídico como um todo, passando a idéia de que um saber crítico e alternativo constitui uma novidade histórica, quando na verdade, se analisarmos a história moderna das idéias jurídicas, veremos que em vários momentos houve movimentos teóricos e políticos de renovação da cultura jurídica - alternativos, portanto, ao saber estabelecido (jusnaturalismo, direito livre, realismo jurídico).

A denominação de Direito Alternativo não seria devida a uma visão de que o direito que está posto aí só existe para servir à classe dominante?

Mauro - A origem das teorias críticas remonta ao Marxismo, que foi a grande teoria crítica da modernidade. E a teoria crítica é o quê? É uma teoria “insatisfeita” com o que está posto. A teoria positivista, não. Ela é exatamente conformadora do que está posto e afirmadora da realidade do homem. A teoria crítica é uma reação à realidade. Se há motivos para se estar insatisfeito, então ela é crítica em relação a isso. E há esse movimento de teoria crítica do direito. Esse é o nome que eu acho correto. E nesse movimento você encontra: o Direito Achado na Rua, o chamado Direito Insurgente (do Rio de Janeiro), o próprio Direito Alternativo, o Direito Livre, etc., que são visões críticas. Por isso a expressão mais abrangente para designar as posturas insatisfeitas com o paradigma reinante na cultura jurídica moderna seria “Teoria Crítica do Direito”. E aí você encontra muita gente.

O Direito Achado na Rua é, portanto, uma Teoria Crítica do Direito. De base Marxista na origem, mas que tem influência da filosofia de Hegel, da nova hermenêutica de Gadamer, da racionalidade comunicativa de Habermas, do pensamento pós-moderno de Boaventura de Sousa Santos, de uma nova visão de sociedade, não conformada, dialética, ou seja, é um movimento de teoria crítica do Direito. É isso, os professores vinculados ao projeto Direito Achado na Rua que se desenvolveu e continua se desenvolvendo, produzem reflexões nessa linha, e têm como marco a obra do Professor Lyra Filho.

Você vê alguma possibilidade desse direito, da forma como está sendo colocado, ser incluído nessa reforma que se pretende fazer aí, de ser aproveitado de alguma maneira, de ser absorvido em parte, ou que se abra um espaço que isso aconteça?

Mauro - A premissa básica da teoria crítica é que, primeiro, a realidade histórica sobre a qual se constituiu o paradigma positivista está sofrendo profundas transformações, e que os mecanismos teóricos que a gente tem de conhecimento da realidade jurídica estão ultrapassados, estão em crise, precisando passar por uma nova mudança paradigmática. Depois, quando se fala em reforma, em uma legislação mais avançada, a gente precisa reconhecer que essa nova maneira de encarar o direito já está, de alguma forma, sendo influenciada pelas várias manifestações críticas, seja do Direito Achado na Rua, seja de outras linhas. Mas o que está perdendo espaço dentro da teoria jurídica é o próprio positivismo. O que está mudando é o paradigma. Qual o outro paradigma que virá, um paradigma argumentativo, hermenêutico, sociológico, não se sabe ainda. Então quando se fala em reforma do Judiciário, reforma dos Códigos, etc., não se trata de um paradigma científico. São reformas normativas, se preferirem, legislativas. O paradigma científico atua muito mais no momento de aplicação da norma, no momento de “conhecer” o direito. O juiz, para decidir uma questão, precisa conhecer o direito. Vimos durante as aulas de Introdução que o próprio Miguel Reale, que não é alternativista, dá subsídios para isso. Então, eu acho que a gente vai observar, e ver cada vez mais, o paradigma se transformar. E as fontes precisam se adaptar a isso.

E é aí que entra a Sociologia?

Mauro - Sim. Precisamos nos reportar ao estudo da sociologia, porque a sociologia é que é responsável por nos dar essa base empírica, fática. Mas uma sociologia, sem uma filosofia que interprete esses dados, esses fatos, é também um exercício que não leva a lugar nenhum. Uma nova teoria do direito, advertia Lyra Filho, deve resultar da associação dos sociólogos, da observação dos dados empíricos da experiência jurídica na sociedade, com os filósofos, com a reflexão ética, valorativa acerca desses dados.

Um lance de dados



Poema-constelação, poema-oceano, poema fundador da modernidade literária, "um lance de dados" de Mallarmé desafia a imaginação e a razão.
Clique aqui para conferir o poema inteiro, na tradução de Haroldo de Campos.

O Fim da América

A escritora americana Naomi Wolf deu entrevista para o portal G1 na qual explica melhor o "alerta patriótico" em que consiste seu livro "O Fim da América". Os leitores daqui sabem que apóio o fim do bushismo. Segundo Wolf, os EUA, sob a batuta de Jr., estão caminhando rumo à ditadura. Leia alguns trechos da entrevista, ou clique aqui para ler tudo.


G1 – O título do seu livro fala em “fim da América”. O que a leva a considerar esta possibilidade?

Naomi Wolf – Meu livro é uma análise apartidária e objetiva de evidências reais de que o país que se proclama a mais perfeita democracia do planeta está cada vez menos democrático. Quero mostrar que há um padrão histórico para fechamento de democracias seja no comunismo da União soviética, da China, na Alemanha nazista, na América Latina nos anos 60 e 70, todos seguiram os mesmo passos ao deixar de lado a democracia e se tornarem ditaduras. São processos bizarramente similares na história, e está começando a acontecer nos Estados Unidos.

Não estou fazendo retórica ou oposição política. Os dez passos são: a referência a uma ameaça permanente (no caso, o terrorismo); criação de um gulag (a prisão de Guantánamo); formação de uma casta violenta (republicanos radicais); montagem de um sistema de vigilância interno (espionagem de cidadãos); opressão de grupos cidadãos (grupos contra a guerra são ameaçados); perseguição e permissão de prisões arbitrárias; ameaça a cidadãos; controle da imprensa; tratamento de dissidência como traição; suspensão do Estado de Direito. Isso é o que o governo Bush está fazendo com o país.

G1 – A sra. diz que não seria diferente se Hillary Clinton se tornasse presidente agora. Acha que seria diferente se Al Gore tivesse vencido as eleições em 2000?

Wolf - Acho que seria bem diferente, se Gore tivesse se tornado presidente, mas agora pode ser tarde demais. É muito perigoso desmontar o delicado sistema de freios e contrapesos que faz com que exista um equilíbrio entre os três poderes, necessário para o funcionamento de uma democracia. Quando a democracia norte-americana foi fundada, os "founding fathers" (“pais fundadores”, membros da assembléia constituinte que criou os Estados Unidos em 1787) sabiam que a natureza humana é falha e que qualquer ser humano se corrompe quando tem poderes ilimitados. No ano 2000 o país ainda funcionava plenamente com equilíbrio entre os três poderes, e Al Gore teria respeitado este sistema, se tivesse sido eleito em 2000, por acreditar neste sistema. A estrutura de então garantia que nem o Executivo, nem o Judiciário nem o Legislativo tinha poderes em excesso. Se qualquer outra pessoa assumir a Presidência agora, depois que o sistema de freios e contrapesos foi destruído pelo governo Bush, vai se sentir completamente tentada pelo excesso de poder, que corrompe.

G1 – Essa é a idéia central do seu trabalho, a corrupção do poder?

Wolf - É um exemplo histórico que se repetiu dezenas de vezes em todo o mundo. Pessoas bem-preparadas, bem-intencionadas, chegam ao poder, mas ,se não há um sistema democrático equilibrado, cede à tentação de poder sem controles. O sistema falho corrompe facilmente qualquer pessoa. Isso aconteceu na Europa, na América Latina, no próprio Brasil. É responsabilidade desse equilíbrio do sistema manter todos os líderes na linha. Manter a democracia precisa não apenas de eleição e votos. É preciso ter pessoas que acreditam na democracia, mas também um sistema equilibrado de freios e contrapesos.
...

sexta-feira, 27 de abril de 2007

APonte seus princípios

APonte tem vocação acadêmica. Foi criada pra isso. Como apoio pedagógico da disciplina Direito Eleitoral que passei a lecionar no UniCEUB este ano. Portanto, pretende apresentar temas e conceitos de interesse, recolher material empírico na Política, mas principalmente no Poder Judiciário, mais precisamente, na jurisprudência eleitoral e constitucional.

APonte é também e necessariamente - considerando a natureza dos blogs - um diário pessoal. Manifesta mais que opinião livre, é registro pessoal. Por isso, permite outras linguagens para comunicar subjetividade: a literatura, a poesia em especial; (pena que eu ainda não descobri como adicionar música); as imagens (extraídas da internet no próprio google image e com o devido registro da fonte), bem, APonte não tem interesse comercial, trato as imagens como citações pictográficas, assim como os textos. Mas se houver qualquer reclamação dos proprietários - mesmo que queiram renunciar a serem acessados pelos eventuais leitores daqui - a citação será excluída.

APonte, como todo diário, é também jornal. Journal. Jornada dos interesses de seu autor. Não é jornalismo, mas é jornalística.

APonte tem editor, tem edição, pois. Tenho que me controlar melhor, isto é, evitar publicar imediatamente as postagens. Tenho alterado as postagens antigas, melhoram muito. Mas, é basicamente limpeza sintática. O conteúdo das mensagens não se altera.

APonte tem arquivos, os apontamentos estão salvos, eu espero. E classificados, em seções. Há também ícones, banners, bandeiras, desejos, livros, bushismos, tudo do lado esquerdo, menos os bushismos, que estão em baixo.

Aponte tem muitos sentidos.

Liberdade

Democracia

Respeito

Beleza

Justiça

Solidariedade

Dignidade

Individualidade

APonte concorda com Boaventura de Sousa Santos. Precisamos de:

"um conhecimento prudente para uma vida decente".

Fidelidade partidária: agora é no STF

O Presidente da Câmara rejeitou o pedido da oposição para declarar a perda de mandato dos deputados que trocaram de partido depois da eleição do ano passado. Arlindo Chinaglia declarou que não tem poder para decretar perda de mandato de parlamentar sem o devido processo legal.

Chinaglia lembrou que a Constituição prevê a perda de mandato depois de processo por quebra de decoro parlamentar com aprovação da maioria dos parlamentares (257 votos). E que, no caso da renúncia, ela é um ato unilateral e só é validada depois de lida em plenário. E o regimento interno da Câmara não prevê a perda do mandato por mudança de filiação partidária.

Os três partidos (DEM, PSDB e PPS) tinham pedido a convocação dos suplentes daqueles que mudaram de legenda, com fundamento na recente decisão do TSE sobre a tese. De acordo com o TSE, o mandato é do partido.

Agora, resta aos partidos, que pretendem recuperar as vagas, recorrer ao Supremo. No STF há precedentes que apontam em sentido contrário à decisão do TSE sobre a fidelidade partidária, mas lá também a jurisprudência tem oscilado bastante.

Vamos observar.

Com informações da Agência Estado.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

A Democracia nas Américas

Divulgo aqui n'APonte mais um artigo. Este foi escrito em 2004 (e melhorado hoje). É um relato das conclusões do XI Curso Interamericano de Eleições e Democracia, do IIDH:


A democracia nas Américas nas duas últimas décadas, este foi o tema do XI Curso Interamericano de Eleições e Democracia, promovido pelo Centro de Assessoramento e Promoção Eleitoral (CAPEL), órgão vinculado ao Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), sediado na cidade de San José, Costa Rica, entre os dias 2 e 5 de dezembro de 2003. O evento também celebrou os 20 anos de fundação do CAPEL, em sessão solene ocorrida no Tribunal Supremo de Eleições daquele país.

Há razões para regozijo. Do ponto de vista institucional – regularidade de eleições, cumprimento de mandatos, respeito às alternativas constitucionais para crises políticas – a democracia nas Américas, à exceção de Cuba que não pratica eleições, tem se consolidado como alternativa política aos regimes de força e intolerância que varreram todos os quadrantes do continente nos anos 60, 70 e parte dos anos 80. De todas as sub-regiões analisadas, América do Norte, Caribe, Centroamérica, Cone Sul e Região Andina, está última é a que suscita hoje maiores preocupações com a instabilidade dos regimes eleitos constitucionalmente, ante as crescentes e explosivas manifestações de insatisfação popular observadas no Peru, Equador, Bolívia e Venezuela, que ocasionaram desde tentativas frustradas de golpe até a renúncia de Presidentes, quadro ainda agravado pela permanente crise vivida na Colômbia, onde os governos se vêem pressionados por milícias extremistas e por narcotraficantes guerrilheiros. Estas e outras situações preocupantes, como a crise paraguaia de alguns anos, a crise argentina que parece agora dissipar-se e a transição democrática ainda não concluída no Haiti, mantêm aceso o alerta para o risco de uma recaída autoritária.

É certo que as instituições básicas que compõem uma democracia representativa – partidos políticos, eleições livres e periódicas, parlamentos, jurisdição independente etc -têm se firmado nesses últimos anos, por toda a América, é também seguro que sua perenidade depende hoje da capacidade de reinventar-se e assim acompanhar as novas demandas pela reinvenção da própria noção de democracia. Não que se tenha esgotado o modelo indireto, implantado na modernidade, fundado em um sistema de representatividade e controle recíproco do exercício do poder, mas este não é mais o único senhor a bordo da viagem democrática.

Ao lado da democracia eleitoral (representativa), o exercício ativo da cidadania por toda a parte tem demandado o alargamento das vias de acesso à tomada de decisões políticas, em um cenário no qual a democracia ganha novos adjetivos: democracia incluinte (acentuando o aspecto socioeconômico), democracia participativa, democracia plebiscitária, entre outros. Parte-se da constatação de que a versão minimalista de democracia, reduzida a um jogo eleitoral, tem perdido força, ficando patente a necessidade de incorporar-se ao conceito mesmo de democracia outras dimensões da cidadania e do respeito aos direitos humanos, principalmente nos planos econômico e social, além de considerar-se a participação cidadã como parte integrante e constituinte dos processos democráticos. Neste particular, observemos com atenção as advertências relativas ao perigo de que a crescente perda de legitimidade das instituições diretamente relacionadas à democracia representativa (parlamentos, partidos, governos, etc.) possa degenerar em um novo tipo de caudilhismo político e/ou em democracias plebiscitárias demagógicas.

A insatisfação com as instituições da democracia tradicional, mensurada nos resultados do latinobarômetro 2003 (pesquisa anual de opinião pública realizada simulltaneamente em 17 países da região, desde 1996, e que retrata a opinião e as atitudes de cerca de 400 milhões de pessoas sobre temas distribuídos em duas grandes áreas, democracia e economia) foi apresentada durante o curso. A julgar pelos dados coletados, não se pode também exagerar na festa com a democracia latinoamericana.

Quanto ao apoio à democracia: somente 35% dos brasileiros indagados responderam sim à pergunta “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?”. Este número é superior apenas ao obtido na Guatemala (33%), mas está muito abaixo dos 78% apurados no Uruguay, em primeiro lugar. Se a questão desloca-se para a satisfação com a democracia, os números são ainda piores: 28%, no Brasil, contra 47%, na Costa Rica, em primeiro lugar. Isto é, mesmo entre aqueles que apoiam a democracia como o melhor forma de governo, há um grande contingente que se declara insatisfeito. Mais preocupante é o resultado obtido quando a questão é: não me importaria que um governo não democrático chegasse ao poder, se puder resolver os problemas econômicos. O Brasil aparece em terceiro lugar com 65%, atrás apenas do Paraguay (76%) e da Nicarágua (71%).

Esta pequena amostra dos resultados da pesquisa já causa certo desconforto, pois expõe uma profunda perda de sintonia entre a população e as instituições mais tradicionais da democracia representativa.

Mais dados: no ranking geral de confiança nas instituições, em primeiro lugar aparece a Igreja Católica (62%), bem acima da Televisão, Forças Armadas, Presidente, Bancos, Empresas, Municipalidades, todos com cerca de 30% de confiança. Abaixo desse patamar encontram-se a Polícia (29%), o Governo (24%), o Poder Judiciário (20%), o Parlamento (17%) e, em último lugar, os Partidos Políticos, com apenas 11% de confiança.

Neste vigésimo aniversário do CAPEL afirmou-se que, para permanecer fiel aos mais profundos princípios que a inspiram, a democracia precisa reinventar-se, permitindo a abertura de suas instituições para as novas dimensões da cidadania. Os Partidos não podem apenas agitar bandeiras programáticas deslocadas do interesse social mais imediato, v.g.

Também há de ser entendida a democracia como modo de vida, mais do que estritamente um procedimento eleitoral, quem sabe até deixar um pouco a política e chegar ao cotidiano, isto é, tornar a vida civil também mais democrática. O cotidiano das casas, fábricas, bairros, escritórios, empresas, essa rede de poderes civis. Nosso cotidiano urbano, castigado por diversas formas de atentado aos valores democráticos. Não haverá verdadeira democracia enquanto persistir de modo endêmico e estrutural a tragédia diária da miséria absoluta, da corrupção, da violência doméstica, dos grupos de extermínio, da discriminação racial, sexual, regional, classista...

Não há democracia sem promoção e realização integral dos direitos humanos.

Enquanto isso, no Equador

O TSE equatoriano cassou o mandato de vários deputados da oposição ao governo do Presidente Rafael Correa. Eles foram cassados por "interferir" no processo da consulta popular sobre a convocação de uma Assembléia Constituinte promovida pelo próprio chefe do Estado. Correa está trilhando caminho parecido com aquele percorrido por Hugo Chavez, isto é, o caminho constituinte de refundação da ordem jurídico-política nacional. Assim como ocorre na Venezuela, o Presidente do Equador tem elevadíssimos índices de aprovação popular. Isso ficou bem claro no resultado do plebiscito: 81% dos eleitores aprovaram a convocação da Constituinte.


Os deputados cassados conseguiram recuperar seus mandatos no Supremo de lá (Tribunal Constitucional), em decisão proferida na última segunda-feira, dia 23. Essa decisão gerou muita polêmica dentro do próprio Judiciário. O presidente do TSE - Tribunal Supremo de Eleições -declarou que a decisão é ilegal e que vai pedir instauração de ação penal contra os membros do Tribunal Constitucional. Nesse clima, um dos suplentes, insatisfeito com o revés, entrou com um pedido para que os deputados fossem acusados de sedição e revolta pelo fato de se considerarem deputados. A promotora do caso acatou a denúncia e pediu a prisão dos parlamentares. O resultado foi a "fuga" dos acusados e o possível pedido de asilo na vizinha Colômbia, governada por Álvaro Uribe (direita).

Hoje, Correa pediu que seu correligionário retirasse a "queixa" contra os parlamentares, alegando que isso estaria apenas atrapalhando o processo político no país, e que as coisas deverão se acalmar até a eleição para a Assembléia Constituinte marcada para setembro deste ano.

É, mas ontem, os membros do Tribunal Constitucional foram afastados pelo Congresso equatoriano, sob a alegação de término de seus mandatos naquela Corte.

São as acomodações da democracia nas Américas. Por enquanto, apesar da crise política, não podemos dizer que nossos vizinhos estejam caminhando para a ditadura, pois, como se sabe, na democracia quem manda é o povo e este tem sido consultado. Mas, que estes eventos fazem lembrar os fatos recentes de instabilidade política e institucional nos países andinos, disso não há dúvida. Neste começo de milênio, um sintomático slogan popular ecoou na América do Sul (especialmente na Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela): Que se vayan todos!

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Endereço d'APonte

Sai de cena o Corregedor

Este julgamento de ontem, 24 de abril, foi o último do Ministro Cesar Asfor Rocha na condição de Corregedor-Geral Eleitoral e de Ministro do TSE. Terminou seu biênio e o STJ, à diferença do STF, tem a tradição de não renovar os mandatos de seus ministros "cedidos" ao TSE.

Cito trechos de seu voto - reparem nos tópicos decisórios -, que já está disponível na íntegra no site da Agência TSE (aqui).

"(...) 9. Ademais, a análise da plausibilidade da Representação Eleitoral, ou seja, da sua admissibilidade processual, evolui coerentemente em três vertentes distintas, mas igualmente importantes e complementares:

(a) a Representação Eleitoral deve conter evidências suficientes à demonstração da ocorrência dos fatos que constituem o seu objeto imediato, pré-definido legalmente como ilícito apurável nessa via jurisdicional;
(b) esses fatos devem ser imputáveis à pessoa ou às pessoas representadas, de modo a se estabelecer o vínculo subjetivo quanto à sua autoria, ou revelar que beneficiaram candidaturas certas e determinadas; e
(c) devem, ainda, esses mesmos fatos potencializar a força de influir no resultado do pleito eleitoral, mediante atuação sobre a manifestação da vontade do corpo de votantes.

(...)

18. No caso vertente, as indicações factuais ou os elementos indicativos da sua materialidade objetiva são notícias divulgadas em jornais de ampla circulação, mas que não se elevam à condição de provas suficientes para lastrear decisão condenatória; de outro lado, é mister a comprovação de que os fatos postos na Representação Eleitoral têm a potencialidade de influir no resultado do pleito.

19. Há que se destacar, quanto a esses pontos, que a colheita desse material e a prova daquela potencialidade lesiva são encargos prévios da parte representante, não lhe sendo lícito carregar à parte representada o ônus de provar a sua própria inocência, nem o de suportar o “strepitu judicii” por tempo indeterminado, com manifesto desgaste e prejuízo para o seu “status dignitatis”.

20. Também merece ser destacada, ainda no que se refere ao conteúdo da peça deflagradora de procedimento qualquer sancionatório, a necessidade da descrição das condutas que estão a merecer a reprimenda, mesmo que se trate de atos infracionais de autoria plural, pois a carência dessa descrição empece sobremaneira o direito subjetivo à ampla defesa, o que não é aceitável pelo sistema jurídico vigente no País.

21. A inicial da Representação Eleitoral não descreve com a devida clareza a conduta de cada um dos imputados e só traz de concreto o fato da apreensão de dinheiro em poder dos representados Valdebran Carlos Padilha da Silva e Gedimar Pereira Passos, sendo a imputação de responsabilidades, aos demais, ilações não comprovadas oriundas da própria parte representante, mas sem qualquer respaldo probatório, como se vê:

(a) Ricardo José Ribeiro Berzoini foi incluído na Representação Eleitoral pelo só fato de ser ele o Presidente do PT e Valdebran Carlos Padilha da Silva ser filiado a esse Partido e haver coordenado a campanha política de candidato à Prefeitura de Cuiabá/MT, pelo que não haveria como negar, segundo a inicial, o interesse da referida agremiação;
(b) quanto à inclusão do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, vê-se, nas próprias palavras da Coligação representante, que se funda na situação extremamente desconfortável em que se encontra, em face de vários auxiliares seus estarem envolvidos em inquéritos e denúncias, de modo que teria interesse em mostrar à sociedade que os seus adversários não estão isentos das mesmas acusações;
(c) a imputação ao Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos é a de que teria determinado tratamento privilegiado ao PT, obstando a divulgação de imagens do dinheiro apreendido, quando os jornais noticiaram amplamente que o Superintendente da PF em São Paulo é que deu as diretrizes da investigação e determinou as conveniências do inquérito, como é normal; e
(d) o indigitamento de Freud Godoy tem por suporte o fato de ser ele Assessor do Gabinete da Presidência e ex-coordenador de segurança das quatro anteriores campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República.

(...)

terça-feira, 24 de abril de 2007

O 30-A

Depois do 41-A, agora será o trinta a compor o repertório do direito e da jurisprudência eleitoral. Se não me engano este de hoje foi o primeiro processo sob a regência do novo dispositivo. Não custa lembrar que a lei que o incluiu na Lei eleitoral foi a 11.330 de 2006. O Tribunal entendeu que aquela lei não alterava regras do processo eleitoral, por isso ela já poderia valer para a eleição que ocorreu no mesmo ano, ou seja, não seria alcançável pela vacatio legis anual imposta pelo art. 16 da Constituição. O Supremo confirmou esse entendimento do TSE, manifestado em consulta, ao julgar ADin 3741. Leia abaixo o artigo e a ementa:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. (Redação da EC nº 04/93)


"Lei 11.300/2006 (mini-reforma eleitoral). Alegada Ofensa ao Princípio da
anterioridade da Lei Eleitoral (CF, Art. 16). Inocorrência. Mero aperfeiçoamento
dos procedimentos eleitorais. Inexistência de alteração do processo eleitoral.
Proibição de divulgação de pesquisas eleitorais quinze dias antes do pleito.
Inconstitucionalidade. Garantia da liberdade de expressão e do direito à
informação livre e plural no Estado Democrático de Direito." (ADI 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em
6-8-06, DJ de 23-2-07)
Alterado ou não, o processo eleitoral do ano passado teve hoje um desfecho, com o julgamento da Ação de Investigação Judicial Eleitoral que afastou, no caso, a incidência do art. 30-A. Prevaleceu a tese da falta de proveito eleitoral. Além disso, a falta de provas que fossem capazes de estabelecer o nexo de responsabilidade entre o fato suspeito e os acusados também foi determinante para o resultado, a absolvição dos acusados.

O caminho do art. 30-A ainda está por percorrer, mas não será com denúncias espetaculares e fracas do ponto de vista jurídico e probatório - considerando sempre o equilíbrio na disputa - que o programa normativo nele expresso ganhará eficácia. A eficácia dessa regra passa pelo problema exposto pelo Min. Caputo Bastos sobre o controle da contas eleitorais. Talvez passe mesmo pelo financiamento público, sob a responsabilidade dos partidos e controle apurado da Justiça Eleitoral.

Ah, quase esqueci do tópico, o 30-A é esse aí:

Art. 30-A. Qualquer partido político ou coligação poderá representar à Justiça Eleitoral relatando fatos e indicando provas e pedir a abertura de investigação judicial para apurar condutas em desacordo com as normas desta Lei, relativas à arrecadação e gastos de recursos. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)

§ 1º Na apuração de que trata este artigo, aplicar-se-á o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, no que couber. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)
§ 2º Comprovados captação ou gastos ilícitos de recursos, para fins eleitorais, será negado diploma ao candidato, ou cassado, se já houver sido outorgado. (Incluído
pela Lei nº 11.300, de 2006)

As provas do dossiê IV - epílogo

Acabou a eleição para Presidente da República agora há pouco, no TSE. O terceiro turno foi vencido por Lula com placar de 6 a 0. Absteve-se o Presidente de votar.

Dissemos aqui que não haveria terceiro turno, mas, na verdade, houve. É o que acontece em qualquer eleição judicializada. O resultado final do pleito acaba por se prolongar quando a vitória eleitoral do acusado vai a juízo. Este ano o Tribunal já cassou ou confirmou decisões regionais que determinaram a perda do diploma de candidatos eleitos por compra de voto.

Hoje, porém, estava em julgamento moral a prática aloprada, a posse de dinheiro vivo, a tentativa - frustrada pela PF - de compra de informações. A acusação pretendia que esses fatos fossem considerados ilícitos eleitorais, para ser mais preciso, que esses fatos fossem considerados prova da captação ilícita de recursos de campanha, de abuso do poder político e do poder econômico, em favor da candidatura à reeleição do Presidente da República , razão pela qual deveria o beneficiado perder seu mandato. Só.

O julgamento, todos sabem, é político, moral e também jurídico. Em matéria eleitoral é fundamental provar-se o desequilíbrio na disputa provocado pela prática apontada como abusiva, pois se não há proveito eleitoral, haveria abuso eficaz? Não. Pode haver até coisa tão grave, do ponto de vista criminal na prática. Mas, não se trata de direito penal. O caso rege-se pela legislação eleitoral (LC 64-90). E abuso de poder aqui pressupõe que a prática apontada tenha pelo menos a potencialidade de afetar o equilíbrio na disputa eleitoral, em favor, obviamente da campanha e do candidato acusados. É, mas para invalidar a vontade popular não pode o direito eleitoral valer-se de presunções. E aí quanto mais numerosa é a vontade popular manifestada em favor de candidatos eleitos em urnas eletrônicas, maior é o peso da responsabilidade jurídica e judicial que, no Brasil de hoje, tem autoridade suficiente e democraticamente conquistada para ser independente, diga-se.

A Justiça Eleitoral está no meio do jogo democrático. O jogo político está sempre em andamento e, frequentemente, tem suas regras alteradas. Mas, o jogo eleitoral tem que acabar. Acabou hoje, no TSE. Foi 6 a 0.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Corte quente

A matéria a seguir foi postada no blog do Josias de Souza. Reproduzo aqui apenas para constar:


O ministro Caputo Bastos, do TSE, fez, na semana passada, durante um seminário no Rio, declarações que aproximam o tribunal integrado por ele de uma corte de mentirinha. Segundo Caputo, os políticos fingem que prestam
contas [de suas tesourarias de campanha] e o tribunal finge que aprova.

As declarações deixaram o presidente do TSE, ministro
Marco Aurélio Mello, num estado que se encaixa à perfeição nas últimas duas sílabas do nome de Caputo. Nesta segunda-feira (23), Marco Aurélio disse o seguinte: "Só posso imaginar que o Rio de Janeiro leva ao delírio, tendo em conta o que ele veiculou. Não estou no tribunal para fingir coisa alguma. Se ele finge, está no local errado. Se ele finge, está claudicando na arte de proceder e esta não é a postura dos demais integrantes do tribunal. Quem fala pelo TSE é o presidente do
TSE."

Marco Aurélio recordou as condições que envolveram o julgamento das contas do comitê reeleitoral de Lula. Disse que, em tempo exíguo (72 horas), 26 técnicos do
TSE debruçaram-se sobre a contabilidade de campanha do presidente.
Detectaram problemas. O PT chegou a promover uma retificação. Mesmo assim,
remanesceram vícios."O colegiado [de técnicos] reprovou as contas do comitê do
presidente Lula, tendo em conta doação espúria”, disse Marco Aurélio. “O
colegiado [de ministros do TSE] aprovou as contas do presidente, contra o meu
voto, porque admitiu uma transferência de um passivo de R$ 10 milhões, gastos a
descoberto, para o partido. E as contas do adversário tucano, Geraldo Alckmin,
estão em exame ainda, mas já na primeira fase de exame caíram em exigência e
teremos a retificadora."

Se os técnicos reprovaram e os ministros, servindo-se de um subterfúgio (a transferência do passivo do comitê de campanha para o partido), resta uma pergunta: afinal, Caputo mentiu?

As Eleições na Justiça - o livro

O editor, Sergio Fabris, já me enviou as provas do livro (leia meu comentário na coluna lateral esquerda do blog). Devo fazer a última revisão no texto e mandar de volta pra ele ainda esta semana. Falta agora apenas o prefácio do Ministro Pertence, mas creio que posso programar o lançamento para o final do mês de maio.

Para minha alegria, recebi um valioso comentário do Dr. Márlon Jacinto Reis, juiz eleitoral engajado na luta contra a compra de votos. O juiz Márlon Reis foi vencedor do I Prêmio Innovare, promovido pelo Ministério da Justiça.

Acho que posso aqui n'Aponte fazer um comercial:

Mauro Almeida Noleto nos brinda com uma obra que inova ao introduzir nas tortuosas sendas do Direito Eleitoral o olhar crítico e propositivo do filósofo
e do sociólogo. As instituições eleitorais são desnudadas desde uma perspectiva
realista, que contempla a insuficiência da dogmática para favorecer a compreensão do modo como operam as leis e seus intérpretes.
O livro enriquece a florescente doutrina eleitoral brasileira, impactada pelo advento de normas e de posturas jurisprudenciais que – tanto tempo depois da instituição da Justiça Eleitoral – começam a emprestar a essa especialidade do saber jurídico um novo status dignitatis. Por tudo isso, afirmo que a leitura de “AS ELEIÇÕES NA JUSTIÇA - Caminhos e encruzilhadas da interpretação do Direito Eleitoral brasileiro” é essencial para a compreensão desse ramo do Direito que só agora, mas não a destempo, se abre às brisas da modernidade.

Márlon Jacinto Reis
Juiz Eleitoral; vencedor do I Prêmio
Innovare “O Judiciário do Século XXI”; D.E.A. em Sociologia Jurídica e
Instituições Políticas pela Universidade de Zaragoza, Espanha.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Cabralina

No espesso vazio se renova
- ser assim, meio cheio meio nada –
na brisa seca à ausência d’outra alcova
sonhos de chuva, ao meio dia, sol a pino

Não pára – inventa sopros, solto voga
em pé – preso no vento, um desatino
só um – morta fadiga de estio
viver sem ter do que (comer) - saco vazio

lacunas

Nas
cidas
des
nudas

cida
des
merecimento

assaz
da
nada
sina

nas
cimento

cava
da
cova
do
esquecimento

cidade

O contrabando ilegal de horas quando não de dias e anos

Para manter a pontualidade e as carreiras


A erudição instantânea das boas vindas a gente célebre


As despedidas disfarçadas de regresso


As origens obscuras da eloquência encartada


A corrida incessante aos vinte e dois anos


As desigualdades de suor no mesmo caudal das ruas


As trocas de lugar nas cerimónias


Para evitar o pôr do sol


Os telemóveis a falar entre si


Enquanto gente louca vagueia pela rua


A falar sozinha


Os adjectivos de bem estar endividando as famílias


Até aos últimos orgasmos


A indústria dos monumentos pessoais


Cotada na bolsa


Os corpos rodeados de alma-outdoors


Por todos os lados


A bonomia do inferno sem nuvens


Que permite ir à praia


Apenas com alguns insultos e um pouco de gasolina


As duas medidas da nação


A dos que dizem e a dos que ouvem


Os manifestos prontos a explodir


Quando não houver polícia


Os sketches de idéias feitas sobre idéias feitas


Na montra das livrarias do pasmo


A consagração de todos os encantos diários




País abençoado: sem terremoto, sem furacão... ?



Furacão do Aroeira

Indecisos em França

As eleições presidenciais francesas deste domingo, dia 22 de abril, trazem um elemento interessante. A dois dias do pleito, cerca de um terço dos eleitores ainda não manifestou preferência por nenhum dos 12 candidatos. O que significa dizer que não há prognóstico preciso, mas apenas indicativo de que o conservador Nicolas Sarkozy e a socialista Ségolène Royal deverão ir para o segundo turno. Porém, é bom não subestimar o poder eleitoral do ultradireitista Jean Marie Le Pen, que nas eleições de 2002 desbancou o socialista Lionel Jospin e foi ao segundo turno contra Jacques Chirac. No segundo turno, a vitória de Chirac foi esmagadora: 82% contra 17% de Le Pen, que praticamente repetiu a votação obtida em primeiro turno. Mas a ida de Le Pen ao segundo turno em 2002 representou uma dura lição para esquerda francesa que chegou dividida para a disputa com Chirac.

No Globo On Line, há um blog (Política à francesa, de Mário Camera), que está acompanhando de perto essa reta final da campanha francesa. Clique aqui para acessar.

Eu aqui d'APonte torço para a socialista.

Às urnas, cidadãos!

quarta-feira, 18 de abril de 2007

A pedagogia da emancipação

Estou aproveitando APonte para publicar textos meus escritos anteriormente. Alguns já foram publicados, outros ainda permeneciam quase inéditos. Este aqui escrevi a pedido do professor José Geraldo, como apresentação para o livro do NEP-UnB que estava sendo lançado em 2004. Não foi publicado, mas acho calha bem sua releitura nesses dias tão bicudos que vivemos.

A pedagogia da emancipação

Adotamos o rótulo de Escola, não por arrogância, mas por humildade. Não impomos lições: procuramos juntos a verdade; não somos mestres, mas eternos estudantes, que nunca deixarão de sê-lo, para evitar que nossas cabeças se tornem museu de ideologia e pantanal de subserviência.”

Roberto Lyra Filho

O Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP) da Universidade de Brasília acaba de lançar, em parceria com a editora Síntese, o precioso livro “Educando para os Direitos Humanos – pautas pedagógicas para a cidadania na universidade”. Como já é característico dos produtos editoriais do NEP, trata-se de uma obra coletiva, multidisciplinar, que retrata, com riqueza de matizes e profundidade teórica, as reflexões compartilhadas por seguidas gerações de alunos e professores da disciplina Direitos Humanos e Cidadania, oferecida como módulo livre para toda a comunidade discente da UnB, desde 1987. Encabeça a lista de organizadores o professor José Geraldo de Sousa Jr., ex-diretor da Faculdade de Direito e mentor do notável projeto “O Direito Achado na Rua”, outro produto coletivo do NEP.

Não obstante representarem, desde suas primeiras enunciações filosóficas, o horizonte valorativo, as promessas éticas das sociedades modernas, os direitos humanos são, nos dias de hoje, alvo freqüente de manifestações críticas fundadas em um certo senso comum ideológico que, instalado na opinião pública, tem levado a deformações perversas na compreensão do sentido e alcance desses direitos. Por força da repetição insistente desse discurso ideológico - cujo exemplo mais corriqueiro se estampa na frase “direitos humanos se prestam apenas à proteção de bandidos” – vivemos sob a constante ameaça de capitulação frente à violência que marca nosso cotidiano, adestrados, dessa forma, a responder à barbárie com truculência e intolerância. O que resta oculto, infelizmente, é que a defesa e promoção integral dos direitos humanos não implica de forma alguma pactuar com a delinqüência, mas, ao contrário, é condição para que qualquer sociedade comece a virar esse jogo autofágico, já que toda ação violenta ilegítima – seja ela particular ou estrutural - é, afinal, violação de direitos humanos, individuais e/ou coletivos.

Mostrar as motivações irracionais e os efeitos perigosos dessa forma de encarar o desafio existencial de efetivação dos direitos humanos tem sido uma das principais tarefas do programa da disciplina “Direitos Humanos e Cidadania”, ao longo desses quase vinte anos, desde sua implantação. Contra o reducionismo ideológico que tanto contamina as consciências, o NEP tem desenvolvido, na educação para os direitos humanos, uma verdadeira pedagogia da emancipação. Com efeito, o processo de ensino-aprendizagem que tem por objeto os direitos humanos, suas matrizes valorativas e seu projeto civilizatório, além de abrir os horizontes dos sujeitos que dele participam para uma adequada compreensão das questões fundamentais que o tema suscita, tem o compromisso de não reproduzir os equívocos flagrantes do ensino dogmático, estimulando no estudante a atitude crítica e problematizadora, em lugar da passividade e da cômoda irresponsabilidade. Educar para os direitos humanos significa, assim, adotar uma pedagogia duplamente emancipatória, na qual tanto o conteúdo programático estudado, quanto os recursos didáticos empregados estejam vinculados às finalidades de defesa e ampliação dos espaços de liberdade para o convívio social. Uma pedagogia que, por tudo isso, ainda traz como benefício mediato a aproximação entre teoria e prática, entre o saber-dizer e o saber-fazer – problema crônico do ensino superior -, pois o aprendizado em direitos humanos, quando não se limita a apenas repetir friamente fórmulas e ritos tradicionais, transforma nossas práticas pessoais (familiares, profissionais, políticas...), acrescenta novos elementos para os juízos de valor e as tomadas de decisão que fazemos quotidianamente, enfim, nos liberta do fatalismo ideológico que, diante da violência crescente que nos castiga, deixa a todos sem alternativa, em pânico e prontos para aprovar e até aplaudir as brutalidades, oficiais ou privadas, que tentam apagar o fogo com gasolina, alimentando a espiral de terror seja com sua ação desmedida, seja com sua omissão covarde.

O livro que ora se apresenta é, pois, genuíno trabalho de escola do pensamento, mais precisamente, da Nova Escola Jurídica Brasileira - fundada por Roberto Lyra Filho na década de 80, na mesma Universidade de Brasília - obra de pensadores livremente associados em comunhão de princípios, no caso, os direitos humanos e o seu poder de qualificar substantivamente o exercício da cidadania e a vida democrática.

Formigas em Rondônia

O Tribunal Regional Eleitoral acolheu pedido de cassação do diploma do Senador Expedito Júnior, eleito na eleição passada pelo PP, pela prática de captação ilícita de sufrágio, a compra de votos. O pedido foi formulado em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo por Acir Marcos Gurgacz - adversário de Expedito na disputa pelo Senado - pela coligação Juntos por Rondônia (PDT/PTB/PL/PSB) e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). A decisão foi unânime.


O TRE entendeu que ficou provado nos autos a existência de um esquema de compra de votos conhecido como formiguinhas. Segundo a acusação, o candidato eleito teria se beneficiado da contratação de funcionários de uma empresa, às vésperas do primeiro turno das eleições de 2006, para trabalhar como cabos eleitorais, as “formiguinhas”. De acordo com os autos do processo, os funcionários teriam recebido R$ 100 cada um, para votar num grupo de candidatos que incluía o senador Expedito Júnior. Esse esquema de arregimentação de “formiguinhas” caracterizaria, segundo o Ministério Público, a compra de votos, vedada pelo artigo 41-A da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições).

Mas, ontem, o Ministro Caputo Bastos do TSE deferiu em parte pedido formulado em medida cautelar para suspender os efeitos da decisão do TRE até a publicação do acórdão ou do acórdão de embargos de declaração, se houver.



De posse dessa decisão, o Senador deve recorrer. Primeiro no próprio TRE com embargos, depois ao TSE, com a interposição de recurso ordinário. Nessa via ordinária, poderá o TSE reexaminar todos os aspectos materiais e jurídicos do litígio, o que implica dizer que as formiguinhas de Rondônia ainda aparecerão outras vezes na cena judiciária. E quanto ao Senador Expedito Júnior, continuará no exercício de seu mandato, pois, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão regional, o TSE deve estender os efeitos suspensivos concedidos agora para sobrestar a execução decisão recorrida. Até porque precisa preservar sua competência recursal.

O que decidirá o TSE? Confirmará a decisão do TRE-RO? Não dá pra saber. É leviano tentar adiantar qualquer decisão judicial sem nem ter conhecimento superficial dos autos. O que se sabe é que os antecedentes do Estado de Rondônia, isto é, de suas lideranças políticas, não são nada abonadores e, no caso, há evidências claras de arregimentação de votos em troca de dinheiro. Mesmo assim, haverá espaço para argumentação, pois a defesa do Senador deverá alegar que o tal esquema não era nada além da regular contratação de serviços de campanha; não compra de votos, mas de contratação e remuneração de força de trabalho para a promoção do candidato.

É como afirmei, sem ver as provas dos autos não dá para prognosticar nada minimamente. Mas, continuaremos por aqui a observar.

Abaixo, as conclusões da decisão do relator, Min. Caputo Bastos:

"Em face desses precedentes, entendo que as peculiares circunstâncias do caso concreto recomendam o exercício do poder cautelar deste Tribunal, objetivando a sustação dos efeitos do acórdão regional, na medida em que a Corte de origem já se pronunciou sobre a execução de sua decisão, sem aguardar a respectiva publicação e eventuais embargos dirigidos àquela instância.

Demais disso, independentemente de conhecer os fundamentos da decisão do Tribunal Regional Eleitoral, ressalto que o caso, em tese, submete-se ao duplo grau de jurisdição, com a possibilidade de interposição de recurso ordinário dirigido a esta Corte, possibilitando novo exame das provas e fatos articulados na referida ação de impugnação de mandato eletivo.

Essa circunstância, por si só, já constitui - em princípio -fundamento para a concessão do pretendido efeito suspensivo, de modo que se aguarde o pronunciamento desta Corte Superior no que se refere à execução do julgado.

Todavia, em face da excepcionalidade da suspensão dos efeitos da r. decisão de fl. 14, diante da possibilidade de se provocar o juízo a quo mediante oposição de embargos, defiro, apenas, o pedido alternativo - suspensão dos efeitos do referido acórdão até a sua publicação, inclusive referente aos declaratórios, se houver.



Posteriormente, e se for o caso, examinarei - após conhecer na integralidade os fundamentos da decisão objeto da presente liminar - a possibilidade de extensão e concessão de efeito suspensivo até o julgamento do apelo de competência desta Corte.

Comunique-se, com urgência, o egrégio Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia.

Brasília, 17 de abril de 2007.



Ministro CARLOS EDUARDO CAPUTO BASTOS


Relator"

terça-feira, 17 de abril de 2007

Para não chorar

Às vezes o humor acompanha a dor. Os cartunistas já começaram a dar o seu recado. As charges abaixo são do ótimo site Daryl Cagle's Professional Cartoonists Index. Não fazem rir, mas fazem mais do que apenas chorar.


Ingrid Rice (Irice), British Columbia, Canada


Paul Zanetti, Australia


David Fitzsimmons, Arizona Daily Star, Tucson AZ

As armas, cidadãos!

O mundo todo ficou chocado com mais essa manifestação da doença americana. 33 mortos no massacre da Virgínia Tech, cujo slogan é invent the future. Descobriu-se agora que o provável assassino é um aluno da Universidade de nacionalidade sul-coreana. Poderia ser chinês ou russo, mas a doença é americana e lá ganha foros de tutela jurídica, direito constitucional de possuir e portar armas de fogo (para auto-defesa). Todo mundo tem direito, as armas estão sempre à vista nas prateleiras, nos filmes de ação, na política externa... Aí, num dia de fúria, alguém resolve massacrar os primeiros que encontra pela frente. Dessa vez, o contaminado era um garoto coreano visto como um loner, solitário, desencaixado, impopular, ressentido, doente e titular do direito subjetivo de adquirir armas de fogo.

A facilidade de acesso e a cultura beligerante dos americanos engendrou essa doença. Mal comparando, pode-se dizer que o american self made man é também um potencial exterminador do futuro, do seu e de tantos outros que tiveram o azar de cruzarem seu caminho no auge do surto assassino. Aliás, não custa lembrar que o ator que na ficção matou tantos hoje governa o Estado da Califórnia.

Mas, e nós? Povo cordial, os brasileiros não temos essa doença. Valorizamos mais a vida, blá,blá,blá... Nada disso, a doença já chegou por aqui e teve até um plebiscito ou referendo para promover a contaminação de mais e mais pessoas. Lembrei aqui do artigo que escrevi sobre o resultado do referendo (A vitória do Não). Causou-me muita preocupação saber que o povo brasileiro é majoritariamente favorável às armas, ainda que com a desculpa moral de auto-defesa. Ouvi muitos argumentos contrários ao meu. Quase todos partiam do senso comum de que o cidadão de bem tem o direito de se defender armado e de que a vitótia do SIM representaria a perda desse direito. Ora, isso é uma falácia que foi muito bem manipulada pela campanha eleitoral dos partidários do NÃO. Disse isso lá no artigo.

Pois bem, os dados da Unesco dão conta de que por aqui na última década morreu mais gente vítima de armas de fogo do que em 23 guerras mundo afora. Na época em que o estudo foi divulgado (2005), pretendia-se contribuir com a campanha do SIM e estimular o desenvolvimento de uma cultura da paz. Ganhou o NÃO. Ganhou a bancada da bala no Congresso, financiada pela CBC e pela Taurus, preocupadas em perder mercado. Depois de passado um tempo o debate esfriou, como sempre ocorre. Mas as estatísticas macabras continuam a crescer entre nós. E o cidadão de bem, protagonista da campanha do NÃO, continua a se armar, para se proteger, claro. Uma pena que as armas não sabem fazer escolhas, elas simplesmente matam, exterminam o futuro: hoje será enterrado em São Paulo o corpo de um menino de 11 anos, morto pelo irmão, de 13, quando brincavam com a arma dos pais, policiais militares, todos do bem, eu presumo. Mortes sem motivo ou por motivo fútil costumam vitimar cidadãos de bem. As armas, cidadãos, elas muitas vezes são o próprio mal.

domingo, 15 de abril de 2007

Bushism

Não é budismo é bushismo mesmo. Como este:

Context:
George W. Bush, Crawford, Texas, Aug, 13, 2001
Bushism:
My administration has been calling upon all the leaders in the in the Middle East to do everything they can to stop the violence, to tell the different parties involved that peace will never happen.


Algo como:

Minha Administração tem estimulado todos os líderes do Oriente Médio a fazerem tudo que puderem para parar com a violência, dizer para as diferentes partes envolvidas que a paz nunca acontecerá!!!!!!!!!

Esse é um bushismo até fraco perto de outros que já li no fim d'APonte, lá embaixo, depois do último post.

São as gadgets do google. É de graça e muito fácil de adicionar ao blog. Os textos estão em inglês, mas daqui a pouco já haverá quem os traduza.

O bushismo é muito simples, às vezes quando lê um bushismo a gente pensa que não tá entendendo nada, e não tá mesmo. Olha aí:

Context:
George W. Bush, Ark., Nov. 6, 2000
Bushism:
They misunderestimated me.


Algo como:

Eles deixaram de me subestimar?? Eles não mal me entenderam ???

Bushismo é isso... Ou não.

Traduza, se for capaz.

Quadro comparativo


Slowpoke

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Hurricane

Se não for arbitrária, a prisão do Desembargador Carreira Alvim é um fato muito grave. O primeiro crime imputado é a formação de quadrilha, associação criminosa. E a lista dos envolvidos é bem extensa. Envolve mais dois desembargadores, delegados, procurador da república, bicheiros, presidentes de escola de samba, advogados...

O mundo acadêmico (processualistas) tem no Desembargador Alvim uma referência. Ainda não há nada divulgado sobre a versão dos acusados. Mas, o hurricane de hoje foi a ventania de ontem, que varreu da eleição para a Presidência do Tribunal o desembargador que está agora em prisão provisória na carceragem da PF.

A vitória do Não

Quando foi divulgado o resultado do referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo no Brasil (outubro de 2005), escrevi o artigo abaixo. Por intermédio de um amigo jornalista, mandei o texto para o Consultor Jurídico, que publicou. Só esqueceu de dar a autoria do texto. Até deixei um comentário no site e eles tiveram o bom senso de publicá-lo.

Campanha vitoriosa a do Não. Na época senti isto:

Apurados os votos do Referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição em todo o país, 64% dos cidadãos brasileiros disseram Não. Louva-se a democracia direta como meio legítimo de exercício da cidadania. Certo, não há que se discutir se o povo sabe ou não sabe votar. O povo vota livremente, cada indivíduo sozinho na cabine tem o poder de decidir somente de acordo com sua convicção. Mas, para formar sua opinião existem, além do debate público que a imprensa anima, as campanhas publicitárias.

Consciência e autonomia são atributos da liberdade também porque devem estar sempre acompanhados de responsabilidades sobre os efeitos das decisões soberanas. Essa fórmula de imputar aos sujeitos livres a responsabilidade pelas conseqüências de seus atos praticados sem coação, que vale para as relações privadas, profissionais e corporativas, valerá também para o campo político? Valerá para os cidadãos e seus representantes?

Um dos pontos fortes da dramática campanha do NÃO foi ter conseguido mobilizar a atenção do eleitor em torno de uma ameaça. A ameaça da perda ou subtração de direitos, que supostamente a vitória do SIM representaria. Ninguém admite que lhe tirem direitos adquiridos e isso a Constituição assegura, na cláusula pétrea que consagra o princípio da irretroatividade das leis (art. 5º, XXXVI). Mas era disso que tratava o referendo, da perda de direitos adquiridos? Não, mas aparentemente ninguém notou, pois a campanha reforçou até o final essa ameaça, estabelecendo ainda uma associação que procurava responsabilizar o Governo Federal pela suposta subtração de direitos.

Em outra frente, a campanha vitoriosa foi um pouco além e indagava do eleitor se lhe era possível confiar nas instituições públicas responsáveis pela ordem e pela segurança, ou seja, se o Estado-Justiça merece a confiança dos cidadãos. Não, Não, Não, Não, em coro cada vez mais forte, responderam os cidadãos brasileiros no dia 23 de outubro, exatamente como na peça publicitária da campanha do NÃO.

Não cabe julgar a decisão expressivamente majoritária dos cidadãos brasileiros, mas as análises, sim, podem e devem ser feitas. Em primeiro lugar, a voz do povo mandou um recado ao próprio Estado, aos políticos e às instituições. Um recado que parece dizer: - não se metam! Diante de sua ineficiência, como polícia e como justiça, abstenha-se o Estado de interferir na esfera privada e no direito de autodefesa armada, que embora não estivesse diretamente em jogo no referendo, foi proclamado pela campanha vitoriosa e confirmado pela população. Ocorre que há muito tempo o Estado nacional soberano que chamamos de moderno, assumiu para si a tarefa exclusiva de distribuir justiça e manter a ordem social por meio da violência controlada pelo Direito. E agora, que cenários essa decisão projeta para o futuro? Será exagero imaginar que haverá um aumento do comércio de armas e munições? Será que, alarmado e descrente, saberá o cidadão de bem que o seu juízo individual no momento de utilizar uma arma – para se defender ou “fazer justiça” – pode ainda ser julgado pelo Estado-juiz? Será que houve e há suficientes esclarecimentos para alertar os cidadãos acerca dos riscos de abusos que possam cometer em legítima defesa? Alguém dirá, agora, que essas são questões impertinentes, pois a lei não autoriza o porte e utilização de armas indistintamente. Ora, os legisladores a esta hora também devem estar analisando os resultados do referendo, afinal ano que vem tem eleição.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

24 horas

Esse é o prazo para interposição de recurso contra decisão de Primeiro Grau que determina a cassação de registro de candidatura por infringência ao art. 41-A.

Foi o que decidiu o Ministro Cesar Rocha, Corregedor-Geral do TSE, ao dar provimento a recurso especial eleitoral do Ministério Público. O MP alegou que o TRE de São Paulo recebeu recurso intempestivo da prefeita do município de Bento de Abreu (SP), Terezinha do Carmo Salesse e do vice-prefeito, José Luiz Marega, eleitos no pleito de 2004. O problema todo foi que esles se valeram do prazo de 3 dias previsto no art. 22 da LC 64/90. E o TSE já está adotando o prazo mais exíguo do art. 96, parágrafo 8º, da Lei das Eleições, conforme está na decisão monocrática do Min. Corregedor:

"O recurso merece prosperar.

Esta Corte Superior já definiu que o prazo para recurso contra decisão do juiz de 1º grau em sede de representação por descumprimento da Lei nº 9.504/97 é de 24 horas e à representação, por captação ilícita de sufrágio por ofensa ao art. 41-A do mencionado diploma legal, aplica-se igualmente este prazo.

A propósito:

"Representação. Art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Sentença. Improcedência. Recurso eleitoral. Intempestividade. Prazo. 24 horas. Art. 96, § 8º, da Lei nº 9.504/97. A jurisprudência da Casa consolidou-se no sentido de que é de 24 horas o prazo para recurso contra sentença proferida em representação eleitoral, nos termos do art. 96, § 8º, da Lei das Eleições, prazo que se aplica inclusive nos feitos em que se apura a captação ilícita de sufrágio a que se refere o art. 41-A da referida lei. Agravo regimental a que se nega provimento."(AgRgREspe nº 25.622/RS, rel. Min. Caputo Bastos, DJ de 3.3.2006).

Destaco também:

"Representação. Propaganda eleitoral antecipada. Recurso eleitoral. Prazo. Art. 96, § 8o, da Lei no 9.504/97. Observância.
1. As representações por descumprimento da Lei nº 9.504/97 regulam-se pelo procedimento estabelecido no art. 96 dessa lei.
2. É de 24 horas o prazo para recurso contra sentença proferida em sede de representação eleitoral, nos termos do art. 96, § 8º, da Lei das Eleições, não sendo aplicável o tríduo previsto no art. 258 do Código Eleitoral. Agravo regimental a que se nega provimento"(REspe nº 24.600/RS, rel. Min. Caputo Bastos, DJ de 15.4.2005).

Os dispositivos legais que informam a matéria são os arts. 11 e 23 da Res.-TSE nº 21.575/2003 e 41-A e 96, § 8º, da Lei nº 9.504/97 e preceituam que a apuração de captação ilícita de sufrágio seguirá o procedimento previsto no art. 22 da LC nº 64/90 e que, o recurso contra a decisão de juiz auxiliar deverá ser apresentado no prazo de 24 horas da publicação da decisão em cartório ou sessão.

Pelo exposto, dou provimento ao recurso, nos termos do art. 36, § 7º, do RITSE.
Publique-se.
Brasília, 11 de abril de 2007.
MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA
RELATOR"

Em matéria de jurisprudência eleitoral o tempo passa muito rapidamente. Reparem nas datas dos precedentes. Os advogados da prefeita cassada, assim como os juízes do TRE paulista talvez nem soubessem que tinham apenas 24 horas.

A jurisprudência eleitoral invalida até concurso

Essa é boa. Notícia publicada no site do jornal Correio Braziliense informa que a homologação do resultado do concurso do TSE para preenchimento de cargos de analista judiciário foi suspensa por decisão judicial. A candidata que ajuizou o pedido na Justiça Federal alega que o CESPE (órgão da UnB de promoção de eventos, concursos) teria desrespeitado o edital no tocante à prova de redação. E aqui é que está o motivo do título deste post: segundo a alegação aceita pelo juiz, o edital declarava que seria cobrado em prova jurisprudência em matéria eleitoral firmada até do dia 6 de outubro de 2006, mas o tema da redação foi a cláusula de barreira que, em dezembro do ano passado, foi declarada inconstitucional pelo STF. A moça não sabia disso e na sua prova de redação, realizada em janeiro deste ano, tratou do assunto como se a tal ainda fosse válida. Resultado, sua nota deve ter sido muito baixa e, por isso, ela alega, não passou no concurso.

Agora o CESPE terá que refazer a correção da prova da candidata, já que não pode refazer o edital para acompanhar a jurisprudência eleitoral. Outros deverão pedir a mesma coisa. Ou o próprio Ministério Público poderá assumir o problema, como sugere a reportagem.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Sopa em troca de votos

O TSE confirmou decisão do TRE de Roraima que cassou o mandato de deputado estadual do Sr. Chico das Verduras. Ele foi punido com base no art. 41-A da Lei das Eleições que tipifica o ilícito eleitoral da chamada compra de votos. A decisão foi unânime.

O candidato teria distribuído sopa a pessoas carentes da periferia de Boa Vista no mês de julho do ano passado, em plena campanha eleitoral, portanto. Mas, decisivo foi o fato de que as pessoas agraciadas com a "caridade" estavam cadastradas pelo candidato em fichas, das quais constava a seção de votação de cada eleitor.

Essa é uma prática bem mais comum do que se imagina, mas nem sempre é possível prová-la, pois quem compra votos não costuma deixar seus rastros, ou seja, elementos que permitam estabelecer a relação entre a benesse oferecida e o proveito eleitoral esperado. Não foi o caso de Chico das Verduras, mais uma vítima do 41-A.

Da Agência TSE.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

A urna eletrônica na berlinda

Hoje de manhã sintonizei na rádio Câmara FM que tem uma excelente programação musical, mas estava transmitindo a audiência pública da CCJ sobre a confiabilidade (ou não) do processo eletrônico de votação, a urna eletrônica.


Quem pediu a convocação da audiência foi o deputado Maurício Quintella Lessa, do PR de Alagoas. Em entrevista a Paulo Henrique Amorim no Conversa Afiada, o deputado declarou:

“Todos nós acreditamos nela por um ato de fé. A Justiça eleitoral diz que ela é segura e nós acreditamos”.

O deputado justificou o pedido de convocação da audiência pública com a participação de especialistas no assunto pelo fato de pairar ainda uma suspeita de fraude na eleição para governador do seu Estado, vencida por Teotônio Vilela Filho, do PSDB.

Participou da audiência o professor Amílcar Brunazzo Filho, ligado ao PDT e um dos criadores do Fórum do Voto Eletrônico que congrega uma lista respeitável de especialistas e/ou interessados que há muito questionam a confiabilidade do sistema que adotamos integralmente desde o ano 2000.

Não ouvi todos as manifestações, mas pude registrar a intenção de criar uma sub-comissão para aprofundar o assunto e propor alterações legislativas no sistema eletrônico de votação. A proposta veio do deputado Geraldo Magella, do PT do DF, que há quatro anos perdeu uma eleição de Governador para Joaquim Roriz - que depois seria absolvido no TSE em processo rumoroso e, eu diria, escandaloso de compra de votos e abuso de poder - por uma margem muito pequena de votos.

Mas, digna de registro mesmo foi a menção feita à proposta de retirar da Justiça Eleitoral o poder de fiscalizar o processo eletrônico. Pelo jeito, a reação dos parlamentares aos rompantes legiferantes do TSE não tardará e envolverá mais do que reformar o sistema político, avançará sobre os poderes (e que poderes!) da própria Justiça Eleitoral.

sábado, 7 de abril de 2007

O juiz do futuro

Os dois leitores deste APonte devem estar acostumados com as interrupções poéticas na sequência de postagens sobre Direito, Política e afins. É que não gosto de apontar apenas para coisas sisudas, necessárias, mas pobres esteticamente, convenhamos. Sou um leitor que escreve e, de vez em quando, se atreve.

Meus atrevimentos literários ficavam restritos aos blogs (tenho outro, o Postais) e sob minha inteira responsabilidade. Mas, ano passado escrevi um conto que chamei de O juiz do futuro. A história me veio por inteiro, a começar pelo desfecho. O texto original sofreu muitas revisões até que me deixasse confiante para atrever-me a mandá-lo para o Concurso literário da Fenajufe, a Federação Nacional dos Trabalhadores do Poder Judiciário. O único requisito era de que os participantes fossem sindicalizados. Eu sou. Concorri na categoria prosa com mais 80 companheiros e fiquei em terceiro lugar, para minha alegria e surpresa.

Aí está.

O juiz do futuro


Por Mauro Noleto

“Um eco que se repete deve vir depois, não antes, que classe de eco é esse? Estou escutando as Variações Reais de Orlando Gibbons, e entre uma e outra, justamente ali nessa breve noite dos ouvidos que se preparam para a nova irrupção do som, um acorde distante ou as primeiras notas da melodia se inscrevem numa audição como que microbiana, algo que nada tem a ver com o que
vai começar meio segundo depois e que, sem embargo, é sua paródia, sua burla infinitesimal...”

CORTÁZAR, Julio. Salvo el Crepúsculo. Tradução livre. Buenos Aires: Suma de Letras, 2004, p. 36.



Olhou para o criado-mudo onde agora jazia o dispositivo em pedaços, tempo em pedaços, compromissos, prazos... Não conseguia mais dormir até o dia claro. Programar o dispositivo para disparar às quatro era agora apenas um jogo particular, desnecessário, o tempo sempre perdia. Podia atrasar a programação em trinta segundos, um minuto, quanto menos tempo era até pior para ele, o dispositivo digital. Há anos repetia a mesma rotina antes de se levantar da cama. No silêncio escuro do quarto, ouvia sempre a mesma espécie de pré-eco que experimentara ontem, durante a visita que fizera ao último stand da feira arqueológica: cabine fechada, fones de ouvido e um disco preto a girar sob uma agulha mecânica. Sim, aquela experiência era muito semelhante ao que experimentava todas as madrugadas, sem exceção, depois que se tornara juiz, a despeito da evidente obsolescência daquele aparelho primitivo. Por um instante, permaneceu deitado, contrariando seus hábitos, a rememorar a experiência curiosa: a agulha cuidadosamente posicionada na borda do disco de petróleo que girava, muito ruído no início, até que, bem baixinho, jurava ter ouvido o primeiro som, numa fração de segundos antes que a música irrompesse com toda a sua força.“Ganhava todas!” Intimamente sabia que a explicação para o seu triunfo matinal no duelo contra o dispositivo estava ilustrada ali naquele stand de feira. Acostumou-se, não sabia como, a esperar formar-se em sua mente o eco do instante futuro em que soaria a sirene metálica, fazendo vibrar o dispositivo. Abria os olhos sempre em tempo de contemplar a escuridão que logo era maculada pelo vaga-lume esmeralda do dispositivo. Naquele dia, porém, um acesso de fúria derrubou seu punho fechado sobre o velho rival. Não tinha conserto. Compraria outro, quem sabe até o jogo ficasse mais emocionante doravante. Estava suado e isso também não era normal. Com o raciocínio fervilhando, levantou-se e passou imediatamente ao exame do processo trazido no dia anterior. Deveria ser apenas mais um caso, mas dessa vez nada parecia caber. Para ele era tudo sempre tão fácil, “uma máquina”, diziam; “nem parecia um juiz”, era o comentário geral. Cinzento, impunha-se a neutralidade. E condenava. Eram tantas as provas, robustas, inescusáveis. Não vacilava. Com prazer, madrugava para julgar e até aquele dia nunca havia falhado. Aos primeiros raios de sol, já haveria de ter composto o relatório do caso. Depois disso é que tomava banho, se vestia, engolia alguma coisa, entrava no auto e saía. No caminho até o Fórum, deduzia. Tudo sempre fora muito fácil para ele. “Tem os códigos na cabeça”, acostumou-se a ouvir entre os elogios freqüentes que recebia. Era então chegar em seu gabinete, redigir a decisão já tomada, assiná-la com seu código pessoal e determinar fosse publicada. Pronto, mais um para as estatísticas. Não perdia as contas. Anotava em segredo a relação dos condenados no caderno escolar que guardava trancado na gaveta da mesa de despachos. Gostava de antiguidades. O caderno já estava quase todo preenchido com a contagem vitoriosa de suas decisões.“Fora da lei não há salvação!”. A oração vetusta emoldurada na porta do gabinete apertado vigiava-lhe o corredor do Fórum de periferia. O lugar estava sempre cheio: soldados, vítimas, estagiários, advogados, serventuários, réus amontoados, as baratas engordando das sobras, passos perdidos repetidos no dia seguinte. Àquela hora, o brilho do sol já insinuava a aquarela matinal, e ele ali a abrir e fechar os códigos, furioso. 'Um branco!' Digitava o nome do réu, logo apagava. 'Nada!?' Sentia entre os dedos incapazes o tempo pesado como o ar rarefeito do espaço urbano. “Ganho todas!”, repetiu diante do espelho a programação neurolinguística. “Não haveria de ser diferente dessa vez, não podia absolver alguém capaz de tamanha heresia. E por amor ainda por cima!”Alienar-se ou deixar-se alienar era crime desde a Reforma Geral de 2080. Tinha sido o tema de uma de suas primeiras palestras: a abolição da escravidão cerebral e o futuro da humanidade pós-estética. Crime inafiançável agravado pela comprovação de motivação passional, nos termos do artigo 50-F do Código de Castigos.“Um fracasso!”. Chegou a pensar em estudar o comportamento primitivo dos povos no mundo de antes do fim da estética. Lembrou-se novamente dos discos descobertos nas ruínas da W3 Sul. A sensação estranha, mas, ao mesmo tempo, familiar que experimentou ao ouvir o pré-eco daquela coisa, a música. “Réquiem”, estava escrito. Bem que ele avisou que aquilo não era tão inofensivo como afirmavam os cientistas do alto de seus doze anos. Começou a chorar. A música insistente inundava sua caverna craniana. Pensou no duelo particular com o dispositivo, “não perdia nunca!”. Correu para o lavatório, tonto, procurou apoio na pia, “emocionado, logo ele?” Um esgar de dor foi a última coisa que viu no espelho. Não viu a manhã que nascia.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

quadrinha

Gabinetes até os dentes
muitos tapetes depois
fica decretado o seguinte:
- vai na frente, eu vou depois.

Hbbs

...dois olhos no gato
que o gasto da confiança
é o fracasso do contrato
- bellum omnium contra omnes -
o Diabo no meio da rua
Dom Quixote, um seqüestrado.

Haicai IV

cidade só
pedras modernas
burocráticas cavernas

O delírio II

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas. Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo. — Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar me da existência. — Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver. Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então, pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres. — Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação. — Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro E por que Pandora? — Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes? — Sim; o teu olhar fascina-me. — Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada. Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita do mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos. — Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota? — Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me? — Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e idiota. — Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez monótona — mas vale a pena. Quando Job amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me. A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...


Machado de Assis, Memórias Póstumas...