A pedagogia da emancipação
Estou aproveitando APonte para publicar textos meus escritos anteriormente. Alguns já foram publicados, outros ainda permeneciam quase inéditos. Este aqui escrevi a pedido do professor José Geraldo, como apresentação para o livro do NEP-UnB que estava sendo lançado em 2004. Não foi publicado, mas acho calha bem sua releitura nesses dias tão bicudos que vivemos.
“Adotamos o rótulo de Escola, não por arrogância, mas por humildade. Não impomos lições: procuramos juntos a verdade; não somos mestres, mas eternos estudantes, que nunca deixarão de sê-lo, para evitar que nossas cabeças se tornem museu de ideologia e pantanal de subserviência.”
Roberto Lyra Filho
O Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP) da Universidade de Brasília acaba de lançar, em parceria com a editora Síntese, o precioso livro “Educando para os Direitos Humanos – pautas pedagógicas para a cidadania na universidade”. Como já é característico dos produtos editoriais do NEP, trata-se de uma obra coletiva, multidisciplinar, que retrata, com riqueza de matizes e profundidade teórica, as reflexões compartilhadas por seguidas gerações de alunos e professores da disciplina Direitos Humanos e Cidadania, oferecida como módulo livre para toda a comunidade discente da UnB, desde 1987. Encabeça a lista de organizadores o professor José Geraldo de Sousa Jr., ex-diretor da Faculdade de Direito e mentor do notável projeto “O Direito Achado na Rua”, outro produto coletivo do NEP.Não obstante representarem, desde suas primeiras enunciações filosóficas, o horizonte valorativo, as promessas éticas das sociedades modernas, os direitos humanos são, nos dias de hoje, alvo freqüente de manifestações críticas fundadas em um certo senso comum ideológico que, instalado na opinião pública, tem levado a deformações perversas na compreensão do sentido e alcance desses direitos. Por força da repetição insistente desse discurso ideológico - cujo exemplo mais corriqueiro se estampa na frase “direitos humanos se prestam apenas à proteção de bandidos” – vivemos sob a constante ameaça de capitulação frente à violência que marca nosso cotidiano, adestrados, dessa forma, a responder à barbárie com truculência e intolerância. O que resta oculto, infelizmente, é que a defesa e promoção integral dos direitos humanos não implica de forma alguma pactuar com a delinqüência, mas, ao contrário, é condição para que qualquer sociedade comece a virar esse jogo autofágico, já que toda ação violenta ilegítima – seja ela particular ou estrutural - é, afinal, violação de direitos humanos, individuais e/ou coletivos.
Mostrar as motivações irracionais e os efeitos perigosos dessa forma de encarar o desafio existencial de efetivação dos direitos humanos tem sido uma das principais tarefas do programa da disciplina “Direitos Humanos e Cidadania”, ao longo desses quase vinte anos, desde sua implantação. Contra o reducionismo ideológico que tanto contamina as consciências, o NEP tem desenvolvido, na educação para os direitos humanos, uma verdadeira pedagogia da emancipação. Com efeito, o processo de ensino-aprendizagem que tem por objeto os direitos humanos, suas matrizes valorativas e seu projeto civilizatório, além de abrir os horizontes dos sujeitos que dele participam para uma adequada compreensão das questões fundamentais que o tema suscita, tem o compromisso de não reproduzir os equívocos flagrantes do ensino dogmático, estimulando no estudante a atitude crítica e problematizadora, em lugar da passividade e da cômoda irresponsabilidade. Educar para os direitos humanos significa, assim, adotar uma pedagogia duplamente emancipatória, na qual tanto o conteúdo programático estudado, quanto os recursos didáticos empregados estejam vinculados às finalidades de defesa e ampliação dos espaços de liberdade para o convívio social. Uma pedagogia que, por tudo isso, ainda traz como benefício mediato a aproximação entre teoria e prática, entre o saber-dizer e o saber-fazer – problema crônico do ensino superior -, pois o aprendizado em direitos humanos, quando não se limita a apenas repetir friamente fórmulas e ritos tradicionais, transforma nossas práticas pessoais (familiares, profissionais, políticas...), acrescenta novos elementos para os juízos de valor e as tomadas de decisão que fazemos quotidianamente, enfim, nos liberta do fatalismo ideológico que, diante da violência crescente que nos castiga, deixa a todos sem alternativa, em pânico e prontos para aprovar e até aplaudir as brutalidades, oficiais ou privadas, que tentam apagar o fogo com gasolina, alimentando a espiral de terror seja com sua ação desmedida, seja com sua omissão covarde.
O livro que ora se apresenta é, pois, genuíno trabalho de escola do pensamento, mais precisamente, da Nova Escola Jurídica Brasileira - fundada por Roberto Lyra Filho na década de 80, na mesma Universidade de Brasília - obra de pensadores livremente associados em comunhão de princípios, no caso, os direitos humanos e o seu poder de qualificar substantivamente o exercício da cidadania e a vida democrática.
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