terça-feira, 13 de março de 2007

Correio entrevista Jairo Nicolau

A entrevista abaixo foi publicada na edição de hoje (13.3.07) do Correio Braziliense. Em foco a reforma política, mas também análise de conjuntura e um pouco de futurologia, bem ao estilo da nossa imprensa precipitada. Nicolau também parece remar contra a maré de mudanças:


O senhor acha que a democracia deu certo no Brasil?

As evidências dos últimos 20 anos são de que o processo democrático se consolidou no Brasil, com partidos organizados, eleições limpas, respeito às regras do jogo. E não faltaram turbulências, como o impeachment de Fernando Collor e os escândalos políticos do governo Lula, para colocar tudo à prova. Hoje somos uma das maiores democracias do planeta, com um processo eleitoral moderno. O Brasil é, sem dúvida, um caso de sucesso da democracia, o que os estudiosos costumam chamar de democracia da terceira onda.

O eleitor também aprendeu nesse período de democracia?

O tempo é o grande propulsor do aprendizado e da correção do comportamento dos eleitores. Não vou entrar nessa discussão se o brasileiro sabe ou não votar. É muito difícil saber o que é votar certo ou errado, mas o tempo trabalha ao lado do eleitor, que pode corrigir seus erros na eleição seguinte.

E como explicar a eleição para o Congresso de nomes como Maluf, Collor, Enéas e Clodovil?

A gente tem que examinar com calma o sistema eleitoral brasileiro, particularmente na Câmara, para não cair no preconceito. O eleitor vota em pessoas e não tem muita noção de como o voto é contado, se é agregado para outros partidos ou coligações. Ele vota em figuras que, por alguma razão, acha competentes, por terem prestado serviços à comunidade ou por razões de identidade, como o sujeito que foi artilheiro do seu time de futebol ou esteve na sua novela favorita. E figuras populares, celebridades e artistas acabam conquistando a simpatia do eleitor, que vê no voto uma forma de prestigiar quem ele gosta. Com isso, elegemos personagens controversos, mas a presença dessas celebridades no Congresso não o torna melhor ou pior. Essa não é a métrica.

Lula foi reeleito por ser Lula ou pelo Bolsa-Família?

Um dos enigmas de uma eleição é que juntamos 100 milhões de cabeças e opiniões, cada uma fazendo uma escolha a seu modo, e tentamos decifrar isso, criar uma grande tese para o voto. No caso do Lula, dá para dizer que houve uma mudança no perfil do seu voto de 2002 para cá. Se você observar as eleições de 2002 e 2006, verá um patamar de votos idêntico: 62% dos votos válidos. Mas quando abrimos a caixa preta, observamos que o perfil dos votos mudou. Lula perdeu a classe média e compensou essa perda com o voto mais popular, concentrando-se no Nordeste. Um pacote de programas sociais ajudou a ampliar a base eleitoral do Lula nos setores mais pobres.

O lulismo existe?

Lula sempre foi maior que o PT. Dessa vez, porém, está muito maior. Lula foi se afastando do PT ao longo do primeiro governo, a ponto de abandonar a estrela na lapela e no jardim do Alvorada. Os dois escândalos que envolveram o seu partido, os casos do mensalão e do dossiê contra os tucanos, acabaram aprofundando uma tendência que se desenhava, já que Lula precisava fazer um governo de coalizão e sofria resistências internas. Seu afastamento ficou claro na campanha do ano passado. Esse segundo mandato vai aprofundar o descolamento de Lula do PT. Mas quando Lula deixar o Planalto, o PT será o primeiro a reivindicar para si o legado lulista, e se transformará no que o Partido Justicialista virou na Argentina, o partido do legado do Perón. O PT vai ser o partido de defesa da herança do lulismo. O PSDB não fez o mesmo com Fernando Henrique. Os candidatos do PSDB, Serra e Alckmin, disseram não ao legado henriquista duas vezes.

Qual será o papel de Lula em 2010?

Lula vai pensar nisso nos últimos dois anos de seu mandato e escolherá alguém para disputar a eleição e defender o seu legado. Ele terá que inventar um nome no PT, que queimou uma geração de líderes com esses escândalos todos, como o (Antônio) Palocci, o José Dirceu, o José Genoíno, o (Aloizio) Mercadante. Com a Marta (Suplicy), Lula fez agora um movimento tímido, evitou dar a ela poder político num ministério forte. E, claro, Lula poderá também escolher um nome dentro do PSB, quem sabe o Ciro Gomes. O jogo está embolado.

A oposição tem chance de levar em 2010?

Tem muita chance; tem dois candidatos fortíssimos e competitivos, Serra e Aécio (Neves), governadores dos dois estados mais fortes do país. E votar neles não seria necessariamente um voto anti-Lula, seria um voto na renovação. Em 2010, com o Lula fora, o eleitor pode olhar para a frente e resolver experimentar um nome novo. Curiosamente, o Lula tem mais chances de voltar em 2014 se perder em 2010. Basta que a oposição faça um governo desastroso e logo virá a saudade do Lula.

A reeleição ajuda ou atrapalha o sistema político brasileiro?

Na verdade, o presidente é eleito para ficar oito anos. E no meio do mandato ele tem uma avaliação, quase um referendo. Se ele está bem, dificilmente não é reeleito. Foi o que aconteceu com os dois presidentes eleitos sob essas regras. E não vejo nada de errado nisso. O que está acontecendo é que as eleições presidenciais estão ficando muito pouco competitivas. Nos últimos anos, foi tudo Lula ou anti-Lula. A grande novidade de 2010 é ver o que será uma eleição presidencial sem o Lula depois de oito disputas seguidas — cinco no primeiro turno e três no segundo. Lula sempre foi um dos pólos. Isso pode dar às eleições de 2010 um contorno emocionante.

Financiamento público de campanha é a solução ou o caixa 2 é uma instituição nacional?

A gente sabe que existe o caixa 2, que políticos recebem dinheiro de empresas e embolsam, não declarando, virando lobistas sem que a sociedade saiba. Mas financiamento público, que aparece como uma solução muito fácil, teria aqui uma série de dificuldades. A maior delas seria a fiscalização. Esse não é um jogo de amadores, é um jogo pesado, e os valores envolvidos são muito altos. Com o financiamento público, a Justiça Eleitoral teria que fiscalizar tudo, ainda mais com dinheiro público na mesa. E isso hoje é impossível. O Brasil tem 5.600 municípios, o número de candidatos é enorme, e o sistema público incentivaria mais candidatos a concorrer, especialmente para presidente, cuja campanha é caríssima.

O que o senhor acha do horário eleitoral gratuito?

O Brasil tem o sistema de horário público mais generoso do mundo. Sou contra acabar com ele; podemos aperfeiçoar, permitir um debate público mais aberto. Mas é um serviço de esclarecimento, de difusão da informação. Pior do que esse horário eleitoral gratuito é acabar com ele.

A reforma política é a solução para os nossos dilemas eleitorais?

Quem inventou esse termo reforma política criou um problema. Falar em reforma é vago e cabe o que cada um achar que deve colocar ali dentro. Além do mais, parte-se da premissa de que muita coisa precisa ser melhorada na política. Temos coisas funcionando muito bem, eleições regulares, competição aberta entre os candidatos, um país que acabou com a fraude no processo de contagem dos votos. Claro que temos coisas para melhorar, como combater a corrupção, discutir o financiamento de campanha, a fidelidade partidária, mas isso não é reforma. Até porque, da forma como o debate entrou na agenda política, cria-se na população a expectativa de uma grande solução que não virá, nem precisa vir. Até porque o Congresso não vai deixar nunca passar uma grande reforma.

Qual a sua opinião sobre a classe política brasileira? A corrupção é endêmica e ser honesto é exceção?

A corrupção não é endêmica, o que não quer dizer que não esteja fortemente presente. Tenho muitos colegas analistas e cientistas políticos que, ao tentar valorizar algumas dimensões do sistema político brasileiro, esquecem que esse é um país onde a corrupção está fortemente presente não apenas no mundo político, mas em todas as instituições. Isso tem a ver com lisura na administração pública, regras de concorrência e mecanismos de punição fortes. Claro, não podemos ser ingênuos, parte da elite política é corrupta e vive disso — no âmbito local, regional e nacional. Mas generalizar é perigoso. Existem políticos de bem, e o efeito colateral dessa idéia de que a política acabou, de que é lugar para bandidos, é que pessoas que gostariam de entrar na política, como intelectuais e setores mais preparados da sociedade, acabam se afastando. Vivemos uma desvalorização da representação política. O presidente Lula, como seus antecessores, busca um governo de coalizão para ter uma maioria legislativa que lhe dê governabilidade.

O caminho é esse?

Com essa fragmentação partidária, em que nenhum partido tem mais de 20% das cadeiras da Câmara, está claro que governar o Brasil, e qualquer estado ou cidade, é necessariamente fazer alianças. Governar o Brasil hoje é governar com coalizão. Tem que compor, não tem jeito. Não há um único caso de governo unipartidário neste país. O Brasil é um país de coalizão, de ponta a ponta, por conta dessa enorme dispersão das forças partidárias.

Essa dificuldade do presidente de definir o ministério é um reflexo dessa montagem delicada?

Tem mais a ver com o estilo do Lula. Fernando Henrique montou o governo dele com rapidez, mas era o jeito dele. O Lula tem um problema para montar, organizar inicialmente um governo, mas é o timing de cada presidente. Está claro para o Lula, mais até do que em 2002, que governar é fazer concessões, é trazer forças diferentes.

Quais os limites éticos ou ideológicos dessa engenharia política? É possível governar sem atrair os partidos mais fisiológicos?

Do jeito que está o Brasil hoje, não. Lula tem que governar com o que eu chamo de centro pragmático, que pode estar em qualquer legenda. Dezenas de políticos foram eleitos para o Congresso por interesses locais, com baixa conexão com seus partidos e com uma enorme disposição de colaborar com o Executivo federal desde que sejam atendidos em suas demandas. Nesses partidos, como o PTB e o PR, as pessoas não são movidas por grandes ideologias, mas por interesses regionais. Com esses acordos se governa o Brasil, não precisa de mensalão, de nada. Eles são fiéis desde que o governo faça o jogo das emendas orçamentárias, de indicar algumas pessoas para cargos. O velho jogo de liberar emendas é legítimo. O mensalão, que é corrupção deslavada, foi uma tremenda burrice. Não precisava. Político só quer ter suas emendas no Orçamento. Quem quer fazer desonestidade se acerta com o setor privado, não precisa do setor público, que é patronagem e recursos para as bases.

O PSDB e o PFL são eficientes como oposição?

A oposição podia ser um pouco mais dura. O PSDB e o PFL são muito mais dóceis do que o PT na oposição. O PT, que desenvolveu uma longa cultura de oposição, foi muito mais talentoso no governo Fernando Henrique do que pefelistas e tucanos como oposição a Lula. Tiveram no colo o presente das CPIs, mas ficou nisso. Se não fosse a corrupção, a contribuição da oposição ao país seria zero.

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