terça-feira, 2 de outubro de 2007

O terceiro gigante

A verticalização de 2002 valeu em 2006 e era, até este ano de 2007, o exemplo mais vistoso do fenômeno que se pode denominar de a judicialização das eleições no Brasil, desde a retomada democrática[i]. Na linguagem jornalística, aliás, essa judicialização dos processos político-eleitorais tem sido chamada, com alguma propriedade, de o “terceiro turno” das eleições.

O fenômeno, no entanto, é tratado em sentido mais geral como a “judicialização da política”[ii], conceito que tem sido utilizado para descrever a revisão judicial (judicial review) dos atos (políticos) do poder legislativo e do poder executivo à luz das garantias constitucionais, ou seja, o controle de constitucionalidade.

Luis Werneck Vianna, porém, amplia o campo de visão e prefere falar de judicialização da política e das relações sociais. Para ele, essa judicialização decorre do processo mais amplo de expansão do Direito sobre a economia liberal ocorrido a partir do advento do Welfare State, e não se limita ao controle de constitucionalidade dos atos normativos, mas alcança outras esferas de sociabilidade, como as relações de consumo, de trabalho, de família, os contratos de uma forma geral e - pode-se acrescentar - o campo das disputas eleitorais.

Em torno do Poder Judiciário vem-se criando, então, uma nova arena pública, externa ao circuito clássico “sociedade civil – partidos – representação – formação da vontade majoritária”, consistindo em ângulo perturbador para a teoria clássica da soberania popular. Nessa nova arena, os procedimentos políticos de mediação cedem lugar aos judiciais, expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta de indivíduos, de grupos sociais e até de partidos – como nos casos de países que admitem o controle abstrato de normas -, em um tipo de manifestação em que prevalece a lógica dos princípios, do direito material, deixando-se para trás as antigas fronteiras que separavam o tempo passado, de onde a lei geral e abstrata hauria o seu fundamento, do tempo futuro, aberto à infiltração do imaginário, do ético e do justo.[iii]

De simples e bem comportada “boca inanimada da lei” para guardião dos compromissos da própria democracia constitucional – trânsito realizado pelo Judiciário no contexto do Estado de bem estar social –, o Poder Judiciário é hoje, ao lado do Big Government e do Big Bussiness, um “terceiro gigante”, encarregado da hercúlea tarefa de controlar não apenas os indivíduos em conflito, no âmbito civil e penal, mas também os poderes políticos estatais e o poder corporativo dos grandes agentes econômicos.[iv]

Mas, à diferença dos atores políticos, que se apresentam por iniciativa própria para o jogo das decisões nacionais, o Poder Judiciário é convocado, ou melhor, é provocado a dizer o Direito. Sua intervenção deve, assim, dar sustentação à própria idéia mínima de democracia[v], impondo o respeito às regras desse jogo, a despeito dos interesses que disputam hegemonia circunstancial.


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[i] Em março de 2007, o TSE, mais uma vez provocado a responder Consulta, inovou ao criar a sanção de perda de mandato ao deputado que troca de partido depois da eleição. Não foi preciso criar outro nome para a regra, chama-se fidelidade partidária. Esse, no entanto, é um processo que ainda está em curso, pois o Supremo novamente dará a última palavra.
[ii] “Judicialização da política e politização da justiça seriam expressões correlatas, que indicariam os efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas. Judicializar a política, segundo esses autores, é valer-se dos métodos típicos da decisão judicial na resolução de disputas e demandas nas arenas políticas em dois contextos. O primeiro resultaria da ampliação das áreas de atuação dos tribunais pela via do poder de revisão judicial de ações legislativas e executivas, baseado na constitucionalização de direitos e dos mecanismos de checks and balances. O segundo contexto, mais difuso, seria constituído pela introdução ou expansão de staff judicial ou de procedimentos judiciais no Executivo (como nos casos de tribunais e/ou juízes administrativos) e no Legislativo (como é o caso das Comissões Parlamentares de Inquérito)”. (Sem grifos no original). MACIEL, Débora Alves; KOERNER, Andrei. The meanings of "juridification". Lua Nova. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php. Acesso em: 12 out. 2006.
[iii] VIANNA, Luiz Werneck [et alli]. A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 22-23.
[iv] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Safe, 1993. p. 32.
[v] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 22.


* Trecho de artigo de minha autoria ainda não publicado (Terceiro Turno - a judicialização das eleições no Brasil e o estilo tópico da jurisprudência).

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