segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Mensalão: posfácio II

O sr. foi pressionado?

Eu jamais iria tolerar que se esboçasse qualquer tipo de pressão. Sempre agi assim. Desde quando promotor de Justiça sempre atuei de maneira absolutamente independente. Essa história (faca no pescoço) não procede. Não só eu, mas todos os ministros estranhamos as declarações do ministro Lewandowski. Ficamos constrangidos porque a avaliação por ele formulada simplesmente é equivocada, completamente divorciada da realidade, não encontra fundamento em base empírica, idônea. Não há fundamentos que possam atestar a procedência dessa avaliação. Agi com convicção, como meus colegas, com observância plena da legalidade e isso ficou claramente demonstrado ao longo dos debates. Não houve pressão sob forma alguma.

Os ministros combinaram seus votos no mensalão?

Posso afirmar que ao longo desses 18 anos jamais presenciei qualquer situação que pudesse sugerir um comportamento indigno como esse. Não há combinação de votos. Isso causa profundo constrangimento íntimo porque compromete a instituição judiciária. Cabe a nós, juízes da suprema corte, zelar pela integridade das suas altas funções. Não podemos transigir de valores como a respeitabilidade institucional, dignidade funcional e integridade pessoal.

O mensalão o impressionou?

Os fatos relatados na denúncia são extremamente graves, profundamente preocupantes. Capazes de suscitar a justa indignação de qualquer cidadão. Isso faz com que se intensifique a necessidade de todos os órgãos competentes do Estado de investigarem todos os vestígios de improbidade administrativa, de assalto ao poder público, para que essas manifestações patológicas resultantes do exercício ilegítimo do poder não se repitam mais.

A decisão do STF resgata a credibilidade na Justiça?

O julgamento que se iniciou no STF reafirma a velha fórmula segundo a qual todo cidadão tem o direito ao governo honesto, o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, legisladores probos e por juízes incorruptíveis. O julgamento exterioriza uma posição do Supremo no sentido de que o exercício da atividade política há de respeitar parâmetros éticos, sob pena de a prática governamental tornar-se ilegítima e infiel às funções dos ocupantes do poder estatal. Traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania e é essa a conseqüência maior que espero seja extraída desse julgamento e também da atuação do Supremo.

José Dirceu disse que a decisão do STF foi injusta.

Eu compreendo a reação dos acusados. É perfeitamente natural essa resistência ao juízo preliminar de recebimento da denúncia, que não representa um prejulgamento. Nesta fase, o Supremo não proferiu juízo condenatório. Eu vou julgá-los (os acusados) de acordo com as provas lícitas produzidas nos autos, com respeito às garantias constitucionais dos réus.

Há provas para condenar?

Entendi que havia elementos suficientes para receber a denúncia. No meu voto ressaltei que os dados probatórios tornavam preocupante a constatação de que se formara um grupo criminoso no núcleo do poder, nos mais altos níveis da Presidência da República. Recebi a denúncia porque há suporte probatório adequado que permite a formulação desse juízo preliminar.

O STF agiu com independência?

Com independência e plena transparência, tanto que a TV Justiça transmitiu todas as sessões. Essa exposição pública do tribunal é altamente importante. Numa república todos os agentes estatais, inclusive os magistrados, devem estar sujeitos ao permanente escrutínio público. É da essência do sistema democrático e do modelo republicano a fiscalização social. Não se admite a existência do regime de governo sem a correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade. Posso dizer, com absoluta convicção, que nenhum membro de qualquer instituição da República está acima da Constituição e nem pode pretender-se excluído da crítica social ou do alcance da fiscalização da coletividade.

O País reclama da impunidade.

Essa questão deve compor a agenda de todos os órgãos do Estado, notadamente do Judiciário. A impunidade não pode subsistir, não pode prevalecer. Respeitadas as garantias constitucionais dos acusados de infrações penais impõe-se que o Estado exerça um magistério punitivo sobre todos aqueles que estão a delinqüir, especialmente contra a administração pública, praticando atos que culminam por gerar essa perda de credibilidade do cidadão nas próprias instituições.

Alguns colegas do sr. criticaram a imprensa, que divulgou mensagens por computador entre dois ministros.

Os meios de comunicação desempenham papel de fundamental importância porque permitem que o cidadão tenha pleno acesso ao processo decisório. Essa visibilidade dos julgamentos do Supremo propiciada pela imprensa representa fator de legitimação das próprias decisões da corte. O que o Supremo tem procurado demonstrar, e tem acentuado essa sua intenção especialmente a partir da experiência da TV Justiça, é exatamente repudiar essa visão de que os processos decisórios estão cercados por uma aura de mistério e de sigilo. O STF deve ser fiel ao princípio da publicidade, grande valor constitucional. O respeito a esse princípio se converte em fator de legitimação das decisões judiciais e dos atos governamentais em geral. Nenhum agente estatal pode reclamar da exposição pública. A Constituição rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta, por isso consagrou a ampla publicidade dos atos e atividades estatais, inclusive do Supremo.

O STF tem estrutura para conduzir uma ação penal com 40 réus?

Estamos julgando, em média, 14 mil processos por ministro/ano. É um volume brutal, absolutamente insuperável, que atesta na verdade a própria irracionalidade do sistema processual que se instaurou entre nós. Por isso são importantes essas sucessivas reformas processuais que têm sido introduzidas em recente legislação no Congresso, normas que visam a imprimir grau maior de racionalidade ao processo decisório, como a súmula vinculante e o instituto da repercussão geral (dispositivo que permite a rejeição de casos sem relevância social, econômica, política ou jurídica nos recursos). Poderão ter eficácia, mas saberemos sobre isso daqui a uns dois anos. O Supremo experimenta uma verdadeira crise de funcionalidade. O agravamento dessa crise poderá inviabilizar por completo o funcionamento do tribunal. Esse é um problema que aflige não só o STF, mas afeta diretamente os outros tribunais superiores.

Diante desse quadro dá para fazer justiça?

Isso compromete a própria racionalidade do processo decisório e impede que o tribunal possa dedicar mais tempo às grandes questões que continuamente estão sendo submetidas ao seu exame. Temos que reconduzir o STF à verdadeira essência do seu papel, o de uma força moderadora desse complexo jogo que há entre os Poderes da República. É preciso superar esses obstáculos processuais. O volume de processos congestiona progressivamente a pauta e os trabalhos do tribunal, gerando gravíssima crise de funcionalidade da própria instituição judiciária.

Como o sr. avalia o foro privilegiado, que puxou o mensalão para o Supremo?

O problema da impunidade reside na questão da prerrogativa de foro. A Constituição de 88 pluralizou de modo excessivo as hipóteses do foro. O constituinte cometeu um grave excesso. É curioso observar a evolução do constitucionalismo brasileiro, desde a Constituição imperial de 1824, passando pelas Constituições republicanas de 1891, de 34, 37, 46, 67, pela Carta de 69 travestida de emenda constitucional número 1 e outorgada por um triunvirato militar, chegando, enfim, à Constituição de 88. Verificamos nesse longo itinerário de oito Constituições uma crescente ampliação do foro.

Qual a diferença da época do Império para hoje?

A Constituição do Império previa cinco hipóteses de foro perante o Supremo Tribunal de Justiça, que era o órgão de cúpula do Judiciário. Hoje, basta consultar o Artigo 102 da Carta, incisos primeiro, letras B e C. Só o STF tem competência penal originária para processar e julgar o presidente da República, o vice, todos os membros do Congresso, ministros de Estado, comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, os membros de todos os tribunais superiores, também os chefes de missão diplomática de caráter permanente.

O STF nunca condenou ninguém. Condenou PC Farias (tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor). Por que os políticos sob suspeita de corrupção buscam o abrigo do foro?

Nossa maior clientela em matéria penal reside no Congresso Nacional, nos membros da Câmara e do Senado. Porque uma vez eleitos, deputados e senadores trazem consigo para o STF todos os inquéritos e procedimentos penais instaurados contra eles, quer como cidadãos comuns, quer como prefeitos, como deputados estaduais, governadores. Esses processos, que tramitavam em outras instâncias, vêm todos para o Supremo, de repente, com a diplomação dos deputados federais e dos senadores. Então, a maior clientela é esta, estatisticamente comprovada. Os congressistas só passaram a ter prerrogativa de foro perante o STF a partir de outubro de 69. Nem mesmo na terrível experiência de 37, na ditadura Getúlio Vargas, o País experimentou essa situação.

O sr. defende o fim do privilégio?

O ideal seria suprimir as hipóteses de foro. Os argumentos em favor do foro é que ele preserva a dignidade da função dos que são processados e assegura o exercício independente de suas atribuições. Deputados e senadores, desde o Império até a Carta de 69, portanto durante 145 anos, não tinham prerrogativa de foro. Nem por isso tiveram conspurcada a dignidade de seus mandatos, nem comprometida a independência das suas funções. É preciso confiar no magistrado de primeira instância. Fui promotor de Justiça quase 20 anos, sempre em primeira instância. Não vejo razão por que subtrair aos membros do Ministério Público Estadual ou do Federal esse poder de instaurar a ação, independente da função do investigado. Não tem sentido que se subtraia aos magistrados da primeira instância a competência para processar e julgar as ações penais contra tais pessoas. Em casos de eventuais abusos ou irregularidades sempre existe a possibilidade de acesso ao instrumento do habeas-corpus, podendo aí sim subir o caso até o STF.

Esses investigados dizem temer ações precipitadas.

Não há uma redução no grau das garantias constitucionais, que continuarão a incidir e a amparar de maneira plena todos os réus em procedimentos penais. Não há qualquer déficit de proteção constitucional, ao contrário, os instrumentos de proteção continuam presentes e ativos. Minha proposta é que se suprima a prerrogativa de foro no sistema constitucional e processual brasileiro. Sei que é uma proposta que pode ser considerada radical, mas o foro deveria valer apenas em favor dos chefes dos Poderes, o presidente da República, o presidente do Congresso e da Câmara, e o presidente do Supremo. No plano estadual, em favor do governador e dos presidentes da Assembléia e do Tribunal de Justiça. Isso permitirá uma desconcentração das próprias atribuições que culminam por congestionar a pauta do STF. O mensalão é um processo com 40 réus, defendidos por grandes advogados. É preciso que haja essa desconcentração para que o Supremo possa voltar ao exercício pleno das suas funções.


Quem é
Celso de Mello

Ministro-decano do Supremo Tribunal Federal, está há 18 anos na corte

Paulista de Tatuí, graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo

Foi promotor de Justiça durante 19 anos, de 1970 até 1989, quando foi nomeado
para o STF


Fonte: Estadão.

Nenhum comentário: