sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O Supremo e a fidelidade

Primeiro o fim, o dispositivo da decisão de ontem. A proclamação do resultado ocorreu por volta de 11 e meia da noite, todos exaustos, o que àquela altura trouxe problemas adicionais para a exata compreensão de tudo quanto fora decidido. Ao final, o Tribunal não concedeu a ordem nos mandados do PPS e do PSDB e a concedeu parcialmente no MS do DEM, apenas quanto à deputada Jusmari Oliveira. Por causa desse dispositivo, os sites de notícia ontem logo depois da decisão declaravam que o STF houvera absolvido os "infiéis". Estavam errados. Os processos foram julgados em conjunto, mas cada um com um relator diferente. O Ministro Celso, primeiro a votar, fixou o paradigma para os demais, isto é, propôs ao Tribunal uma solução para o problema apresentado (cassar mandatos por causa de migração inter-partidária sem regra expressa na Constituição e contra a vigente jurisprudência da Casa). Essa proposta, ao final aceita majoritariamente, divide-se em três partes:
  1. O vínculo jurídico dos mandatos obtidos pelo sistema proporcional é com os partidos. Essa é a primeira premissa da decisão. Serviria para dela extrair a conclusão de todo o julgamento. A declaração explícita de que o vínculo jurídico dos mandatos parlamentares obtidos pelo sistema proporcional (vereadores e deputados) se dá com os partidos e não com os candidatos eleitos. Essa foi a tese adotada pelo TSE na resposta que deu à Consulta 1398. Toda a construção da tese passa pela interpretação do funcionamento e da natureza do sistema proporcional que elege vereadores e deputados no Brasil. Era até ontem apenas uma tese. Hoje é a nova regra (implícita) constitucional vigente no país sobre a matéria. Ficaram "implicitamente" vencidos os ministros Eros Grau, Lewandowski e Joaquim Barbosa, que não concediam a ordem por entender que não é possível extrair da Constituição a interpretação de que os mandatos "pertencem" aos partidos.
  2. O marco temporal de eficácia (mutação constitucional). O que assistimos neste julgamento foi o que a teoria chama de mutação constitucional. O Tribunal explicitamente alterou o modo de compreender o mesmo texto constitucional que, nessa matéria de fidelidade partidária, não se alterou desde 85 (ano em que foi emendada a Constituição militar para permitir a troca de partido sem a sanção de perda de mandato). Desde então, a cada nova legislatura, o mercado de trocas entre partidos funciona à conveniência do fisiologismo consuetudinário, mas também da legítima disputa política e ideológica. Disputa que permitiu a criação do próprio PSDB - um dos impetrantes -; do PPS, outro que pedia de volta o mandato dos deputados migrantes (aliás com brilhante defesa oral do presidente do partido, Roberto Freire); e do próprio DEM, ex-PFL que era PDS que foi ARENA... O fato é que o próprio Supremo já havia decidido (Moreira Alves, Pertence) que, à falta de regra explícita na Constituição e considerando o fato de que o regime constitucional anterior revogou a regra que havia, não se poderia cassar o mandato de parlamentar por desfiliação e "fuga" para outro partido. Por isso, o Min. Celso indicou a necessidade de se fixar um marco temporal, uma data de validade (ou de eficácia em sentido técnico) para o novo entendimento. O objetivo é evitar alteração abrupta no quadro da certeza e segurança jurídicas. Mas, a data escolhida de certo modo surpreendeu, pois foi escolhida a data de "julgamento" da Consulta 1398 - o dia 27 de março deste ano de 2007 - pelo Plenário do Tribunal Superior Eleitoral. Segundo Celso de Mello, ali ocorrera a mutação constitucional porque votaram por ela três ministros da Casa, porque houve ampla divulgação do fato... O Min. Barbosa não concordou. Para ele se fosse o caso de mudar a interpretação da Constituição que se fixasse a data daquele julgamento. Ficou vencido. Ficaram em minoria também os ministros Britto e Marco Aurélio que entendiam que a nova regra deveria valer desde o início da legislatura atual. O marco temporal é mais uma premissa da decisão. E foi com base nela que o Ministro Celso viu-se obrigado a não conceder a ordem no mandado de segurança de era relator (PSDB), pois todos os deputados que saíram do ninho tucano fizeram isso antes do dia 27 de março. Foi "vitória de pirro", o popular "ganha mas não leva". Ganham os partidos que impetraram os mandados de segurança no Supremo porque a tese deles foi vitoriosa (o mandato é do partido), mas não levaram quase nada (pelo menos nesse momento), pois apenas a deputada Jusmari Oliveira do DEM da Bahia foi alcançada pela decisão de ontem. Seu caso terá ainda que ser encaminhado pelo presidente da Câmara ao TSE para que ela se defenda. Essa foi a única ordem concedida ontem, mas não terá sido a única decisão.
  3. O amplo direito de defesa (devido processo legal). Não haverá cassações sumárias de mandato. Todos os que forem alcançados pelas consequências do julgamento - não apenas do dispositivo da decisão - de ontem terão assegurados o contraditório e a ampla defesa, ou seja, um devido processo legal. Aqui há mais uma novidade, a mais importante em termos práticos. Será do TSE a tarefa de conceber e editar as regras desse devido processo legal de "cassação de mandato" por migração inter-partidária de parlamentares eleitos pelo sistema proporcional. Se o TSE acolher a sugestão feita, quase como um obiter dictum, pelo Min. Celso, deverá utilizar o rito previsto nos arts. 3º a 7º da Lei Complementar 64/90, a lei das inelegibilidades. Esse é o rito para o processamentos das impugnações de registro de candidaturas. O Min. Celso lembrou ainda o exemplo da resolução do TSE que, após uma decisão do STF a respeito, foi editada para estabelecer o novo critério (nova interpretação constitucional) de composição das câmaras de vereadores de todo o Brasil. O TSE, a rigor, é que recebeu a ordem mais importante, a de disciplinar e julgar o "troca-troca".
Segundo o filósofo americano Ronald Dworkin (citado ontem pelo Min. Direito), a jurisprudência de um tribunal é como uma narrativa contínua, um romance em cadeia. Ontem tivemos uma mudança importante no roteiro deste romance, os ministros escreveram um novo disparador temático, que provocará novos capítulos para a história da judicialização da política brasileira. Só que a partir de agora o cenário é o TSE. De novo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente resenha.