Sobre os princípios
Razoabilidade, precaução, onerosidade excessiva, potencialidade, equilíbrio, proporcionalidade, a lista das chamadas normas abertas, princípios jurídicos, cláusulas gerais é muito mais vasta e diversificada, embora todos aquelas expressões sejam bastante conhecidas e praticadas em seus respectivos ramos jurídicos.
Algumas têm alcance maior (razoabilidade, proporcionalidade) do que o raio de ação do direito eleitoral, por exemplo (potencialidade e equilíbrio). Em todas sobressai essa característica comum, a imprecisão a priori. Não possuem uma carga semântica fechada o suficiente para antever o seu próprio sentido antes do confronto com a experiência.
Estive lendo a tese do Roberto Freitas (ele não me mandou o título, ou eu não achei). O capítulo V, sobre as normas abertas, princípios, cláusulas gerais me dirá melhor como compreender teoricamente o fenômeno do ponto de vista da teoria da linguagem, creio.
O que eu quero agora é destacar o fenômeno, a invasão dos princípios, a era da indeterminação.
Já se foi, penso, a era da segurança jurídica, conhecida como positivismo jurídico, quando a confiança na objetividade dos preceitos normativos (premissas válidas) pretendia garantir a certeza ou segurança da resposta decisória para cada caso concreto, uma sentença, um contrato, uma multa, seja que tipo de decisão juridicamente qualificada, haveria de ser resultado de silogismos, deduções, em que o mínimo de subjetividade devesse ser admitido.
Devesse ser, mas, na verdade, esse credo parece mais com a descrição de um projeto ideal - tanta objetividade. No enlace do direito com a política, no mundo da tomada de decisões não há hegemonia da objetividade, porque, afinal, não há acordos (semânticos) prévios entre as partes que votam, decidem, julgam, legislam, multam. Há decisão e, portanto, política em sentido formal, mas também margem para se chegar a consensos majoritários prudentes ou não, desinteressados ou não, legítimos ou não.
Há mais. Quando se trata de aplicar uma norma aberta semanticamente ou um princípio que cumpra esse papel de abertura hermenêutica na aplicação de uma norma fechada, o processo jurídico ganha em possibilidades o que perde em segurança.
Sempre que se maneja com princípios na prática jurídica (judicial, principalmente) pretende-se modular argumentativamente o alcance de um preceito mais direto. Tomemos, como exemplo, a notícia postada abaixo, sobre a utilização ou não do princípio da insignificância, ou bagatela, na interpretação do preceito aplicável à prestação de contas de campanha.
Nesse caso, o princípio atuará como moderador ou modulador da intensidade da regra fechada que obriga os candidatos e partidos a prestarem contas de todas as suas receitas e despesas eleitorais. Não há prognóstico certo ou seguro sobre o resultado da decisão a ser tomada pelo TSE.
Alguém poderia objetar, mas isso até Kelsen já havia dito, isto é, que não há diferença formal entre o legislador e o juiz, quando decidem validamente (autorizados pelo ordenamento a fazê-lo). Certo. Mas, quando o parâmetro decisório - a norma a ser aplicada ao caso-conflito - torna-se cada vez mais fluido, indeterminado não é silogismo o processo mental utilizado em primeiro plano, mas algo diferente, uma espécie de construtivismo jurídico, em que o sentido e o alcance das regras são submetidos a um debate argumentativo que os constrói pela força dos argumentos e da persuasão. A solução-decisão deduzida vem depois.
A legalidade contemporânea é do tipo programática. Assumiu, ao que parece, a linguagem constitucional não contente em ficar apenas subsumida. Ao mesmo tempo, parece ter reconhecido sua incapacidade de antever e, assim, programar o futuro nos limites de sua moldura decisória. O mundo do direito na democracia é hoje bem mais aberto e sujeito à interpretação e à construção da organização social das liberdades, para lembrar de Lyra Filho.
Moral da história: quando as premissas decisórias são ou tornam-se indefinidas, precisam ser construídas pela argumentação, todo o processo decisório passa a ser bem mais subjetivo. Os juízes são, pois, bem mais responsáveis por suas decisões do que os sonhos de neutralidade positivistas os fizeram crer.
Mauro Capelletti disse assim:
“Em todas as suas expressões, o formalismo tendia a acentuar o elemento da lógica pura e mecânica no processo jurisdicional, ignorando ou encobrindo, ao contrário, o elemento voluntarístico, discricional, da escolha. Típico de todas essas revoltas – representadas por várias escolas de pensamento, como a sociological jurisprudence e o legal realism nos Estados Unidos, a Interessenjurisprudenz e a Freierechtsshule na Alemanha e a recherche scientifique de François Gény e de seus seguidores em França – foi, ao contrário, o reconhecimento do caráter fictício da concepção da interpretação, de tradição justiniana e montesquiniana, como atividade puramente cognescitiva e mecânica e, assim, do juiz como mera e passiva ‘inanimada boca da lei’. (...) Desnecessário acentuar que todas essas revoltas conduziram à descoberta de que, efetivamente, o papel do juiz é muito mais difícil e complexo, e de que o juiz, moral e politicamente, é bem mais responsável por suas decisões do que haviam sugerido as doutrinas tradicionais.” (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: SAFE, 1993, p. 32.)
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