sábado, 7 de abril de 2007

O juiz do futuro

Os dois leitores deste APonte devem estar acostumados com as interrupções poéticas na sequência de postagens sobre Direito, Política e afins. É que não gosto de apontar apenas para coisas sisudas, necessárias, mas pobres esteticamente, convenhamos. Sou um leitor que escreve e, de vez em quando, se atreve.

Meus atrevimentos literários ficavam restritos aos blogs (tenho outro, o Postais) e sob minha inteira responsabilidade. Mas, ano passado escrevi um conto que chamei de O juiz do futuro. A história me veio por inteiro, a começar pelo desfecho. O texto original sofreu muitas revisões até que me deixasse confiante para atrever-me a mandá-lo para o Concurso literário da Fenajufe, a Federação Nacional dos Trabalhadores do Poder Judiciário. O único requisito era de que os participantes fossem sindicalizados. Eu sou. Concorri na categoria prosa com mais 80 companheiros e fiquei em terceiro lugar, para minha alegria e surpresa.

Aí está.

O juiz do futuro


Por Mauro Noleto

“Um eco que se repete deve vir depois, não antes, que classe de eco é esse? Estou escutando as Variações Reais de Orlando Gibbons, e entre uma e outra, justamente ali nessa breve noite dos ouvidos que se preparam para a nova irrupção do som, um acorde distante ou as primeiras notas da melodia se inscrevem numa audição como que microbiana, algo que nada tem a ver com o que
vai começar meio segundo depois e que, sem embargo, é sua paródia, sua burla infinitesimal...”

CORTÁZAR, Julio. Salvo el Crepúsculo. Tradução livre. Buenos Aires: Suma de Letras, 2004, p. 36.



Olhou para o criado-mudo onde agora jazia o dispositivo em pedaços, tempo em pedaços, compromissos, prazos... Não conseguia mais dormir até o dia claro. Programar o dispositivo para disparar às quatro era agora apenas um jogo particular, desnecessário, o tempo sempre perdia. Podia atrasar a programação em trinta segundos, um minuto, quanto menos tempo era até pior para ele, o dispositivo digital. Há anos repetia a mesma rotina antes de se levantar da cama. No silêncio escuro do quarto, ouvia sempre a mesma espécie de pré-eco que experimentara ontem, durante a visita que fizera ao último stand da feira arqueológica: cabine fechada, fones de ouvido e um disco preto a girar sob uma agulha mecânica. Sim, aquela experiência era muito semelhante ao que experimentava todas as madrugadas, sem exceção, depois que se tornara juiz, a despeito da evidente obsolescência daquele aparelho primitivo. Por um instante, permaneceu deitado, contrariando seus hábitos, a rememorar a experiência curiosa: a agulha cuidadosamente posicionada na borda do disco de petróleo que girava, muito ruído no início, até que, bem baixinho, jurava ter ouvido o primeiro som, numa fração de segundos antes que a música irrompesse com toda a sua força.“Ganhava todas!” Intimamente sabia que a explicação para o seu triunfo matinal no duelo contra o dispositivo estava ilustrada ali naquele stand de feira. Acostumou-se, não sabia como, a esperar formar-se em sua mente o eco do instante futuro em que soaria a sirene metálica, fazendo vibrar o dispositivo. Abria os olhos sempre em tempo de contemplar a escuridão que logo era maculada pelo vaga-lume esmeralda do dispositivo. Naquele dia, porém, um acesso de fúria derrubou seu punho fechado sobre o velho rival. Não tinha conserto. Compraria outro, quem sabe até o jogo ficasse mais emocionante doravante. Estava suado e isso também não era normal. Com o raciocínio fervilhando, levantou-se e passou imediatamente ao exame do processo trazido no dia anterior. Deveria ser apenas mais um caso, mas dessa vez nada parecia caber. Para ele era tudo sempre tão fácil, “uma máquina”, diziam; “nem parecia um juiz”, era o comentário geral. Cinzento, impunha-se a neutralidade. E condenava. Eram tantas as provas, robustas, inescusáveis. Não vacilava. Com prazer, madrugava para julgar e até aquele dia nunca havia falhado. Aos primeiros raios de sol, já haveria de ter composto o relatório do caso. Depois disso é que tomava banho, se vestia, engolia alguma coisa, entrava no auto e saía. No caminho até o Fórum, deduzia. Tudo sempre fora muito fácil para ele. “Tem os códigos na cabeça”, acostumou-se a ouvir entre os elogios freqüentes que recebia. Era então chegar em seu gabinete, redigir a decisão já tomada, assiná-la com seu código pessoal e determinar fosse publicada. Pronto, mais um para as estatísticas. Não perdia as contas. Anotava em segredo a relação dos condenados no caderno escolar que guardava trancado na gaveta da mesa de despachos. Gostava de antiguidades. O caderno já estava quase todo preenchido com a contagem vitoriosa de suas decisões.“Fora da lei não há salvação!”. A oração vetusta emoldurada na porta do gabinete apertado vigiava-lhe o corredor do Fórum de periferia. O lugar estava sempre cheio: soldados, vítimas, estagiários, advogados, serventuários, réus amontoados, as baratas engordando das sobras, passos perdidos repetidos no dia seguinte. Àquela hora, o brilho do sol já insinuava a aquarela matinal, e ele ali a abrir e fechar os códigos, furioso. 'Um branco!' Digitava o nome do réu, logo apagava. 'Nada!?' Sentia entre os dedos incapazes o tempo pesado como o ar rarefeito do espaço urbano. “Ganho todas!”, repetiu diante do espelho a programação neurolinguística. “Não haveria de ser diferente dessa vez, não podia absolver alguém capaz de tamanha heresia. E por amor ainda por cima!”Alienar-se ou deixar-se alienar era crime desde a Reforma Geral de 2080. Tinha sido o tema de uma de suas primeiras palestras: a abolição da escravidão cerebral e o futuro da humanidade pós-estética. Crime inafiançável agravado pela comprovação de motivação passional, nos termos do artigo 50-F do Código de Castigos.“Um fracasso!”. Chegou a pensar em estudar o comportamento primitivo dos povos no mundo de antes do fim da estética. Lembrou-se novamente dos discos descobertos nas ruínas da W3 Sul. A sensação estranha, mas, ao mesmo tempo, familiar que experimentou ao ouvir o pré-eco daquela coisa, a música. “Réquiem”, estava escrito. Bem que ele avisou que aquilo não era tão inofensivo como afirmavam os cientistas do alto de seus doze anos. Começou a chorar. A música insistente inundava sua caverna craniana. Pensou no duelo particular com o dispositivo, “não perdia nunca!”. Correu para o lavatório, tonto, procurou apoio na pia, “emocionado, logo ele?” Um esgar de dor foi a última coisa que viu no espelho. Não viu a manhã que nascia.

2 comentários:

Gustavo Pedrollo disse...

Mauro,

Não perde a verve poética do blog. Como um dos teus leitores ocasionais, acho que esses estão entre os teus melhores posts.
A citação do Cortázar é uma ótima lembrança.

Abraço,

Mauro Noleto disse...

Muito obrigado pela força, Gustavo. Pode deixar que continuarei a postar meus postais aqui n'APonte.

Abraço forte.