terça-feira, 3 de abril de 2007

Fidelidade à jurisprudência

Está se confirmando o que adiantamos aqui n'APonte. O caminho dos partidos que comemoraram a decisão do TSE da semana passada será primeiro a Mesa da Câmara (o PSDB acaba de protocolar requerimento pedindo as vagas que perdeu). A Mesa deverá indeferir, daí o passo seguinte será impetrar mandado de segurança no Supremo. Só pra lembrar, o TSE declarou, em processo de consulta, que o mandato parlamentar obtido pelo sistema proporcional pertence ao partido e não ao candidato eleito, portanto, se este se desfilia do partido que lhe garantiu a eleição, perde a vaga.

A jurisprudência vive uma fase de intenso revisionismo, não apenas no TSE onde isso parece uma constante, mas também no Supremo. A composição está bastante alterada, todos sabemos, mas será que nesse caso terá peso suficiente a tese da fidelidade partidária construída pela interpretação, e sem regra explícita que a sustente, para rever a jurisprudência da Suprema Corte sobre o assunto?

Em matéria divulgada há pouco na Folha On Line, Fernando Rodrigues cita uma decisão do Tribunal, no mandado de segurança 22.927/89, relatado pelo Min. Moreira Alves. A orientação da jurisprudência era então (e ainda é) clara no sentido de que não perde o mandato, à falta de regra explícita, o suplente de parlamentar que troca de partido depois da eleição. Na ocasião, pretendia-se impedir a posse de um suplente que mudara de sigla. Ora, é regra primária de interpretação - argumento a fortiori se não me engano - que se pode o mais, pode o menos. Ou seja, se pode o titular trocar de partido e ainda assim manter a vaga, na eventualidade do surgimento posterior da vaga, pode também o suplente que abandona o partido pelo qual conseguiu essa condição ser empossado.

Há um outro Acórdão, também em mandado de segurança (20.916/89), anterior àquele. Nesse julgamento - me parece - a posição em que se encontra a jurisprudência hoje foi firmada com o voto do Min. Pertence, que passaria a ser relator para o acórdão.

Observem que Pertence traz à memória a evolução recente do regime constitucional aplicado aos partidos políticos brasileiros, desde o controle exercido nos tempos de ditadura, passando pela abertura e até o texto da então novíssima Constituição de 88. Percebam a advertência kelsenenana feita logo no início do raciocínio sobre à necessidade de fugir de tentações. É emblemático!

Leiamos.

"(...) Senhor Presidente, eu gostaria de poder acompanhar as conclusões desse raciocínio. Mas é fundamental fugir à tentação de inserir no direito positivo as nossas convicções sobre o que ele deveria ser.

Por isso, não consegui me convencer de que o raciocínio aqui desenvolvido em relação ao suplente possa sobreviver, quando já não sobrevive em relação ao titular do mandato. Tudo seria diferente, na vigência do art. 35, V, da Carta de 69, expressa em estabelecer, entre as hipóteses de perda de mandato, a prática de atos de infidelidade partidária, segundo o previsto no parágrafo único do art. 152, o qual, por sua vez, explicitamente enumerava como infidelidade partidária o abandono do partido pelo qual fora eleito o titular. Essa regra foi amainada, salvo engano, pela Emenda 11, no caminho da abertura para o pluripartidarismo, que permitiu o abandono do partido pelo mandatário, quando se destinasse à fundação de outro partido. Mas veio afinal a ser revogada essa hipótese de perda de mandato, na Emenda Constitucional 25/85.

A atual Constituição não cuida de nada parecido, limitando-se a dizer que os Estatutos partidários prescreverão normas de disciplina. Mas, a meu ver, obviamente não poderão chegar a inserir uma nova hipótese de perda de mandato para os seus filiados...
O ponto está assim, data venia, não em raciocinar a partir dos princípios do sistema proporcional, em relação exclusivamente ao suplente, mas, sim, ante a evidência de que, hoje, esses princípios teóricos do mandato proporcional não levam à perda do mandato.

(...)

Lamento, assim, Senhor Presidente, que não possa ceder - como disse - à tentação do fortalecimento do vínculo do mandato pelo qual, acho, passa a construção de uma democracia viável. Mas não tenho como dar esse tratamento severo ao mandatário eventual, ao suplente, quando não posso impô-lo ao titular, malgrado esse espetáculo pouco edificante, a que a nação assiste nos últimos meses, da dança dos mandatários titulares, destinados a dar segundos ou minutos na propaganda eleitoral gratuita a este ou àquele candidato.

Essa impunidade do titular que deserta da legenda pela qual se elegeu - a qual decorre inevitavelmente da Constituição -, mostra que não faz sentido, data venia, continuar a dizer que o mandato é também do partido, por amor a princípios que o texto positivo não perfilhou.
E se o mandato não é do partido, senão enquanto a permanência de seu vínculo aprouver ao titular, não vejo como impô-lo apenas ao suplente, até porque a mesma fidelidade não mais lhe seria exigível, desde o momento em que sucedesse o mandatário.

Nem vejo explicação jurídica, data venia, para que o suposto direito de um partido ao mandato, extinto com a transmigração do mandatário a outra legenda, renescesse das próprias cinzas, quando se fosse cuidar de sua sucessão na vacância por qualquer motivo.

Lamentando assim dissentir dos doutos votos que me antecederam, denego a segurança."

É esse entendimento que será reaberto pelo novo STF? Com que fundamento normativo? Será possível dizer simplesmente que a regra que valia desde os primeiros passos da Constituição de 88 sofreu uma súbita mutação semântica?

Vamos observar.

2 comentários:

Cláudio Ladeira de Oliveira disse...

Caro Mauro,
Sei que este não é um sítio de astrologia jurídica, mas acaso você viu a avaliação apresentada no "Blog dos Blogs" ( http://z001.ig.com.br/ig/55/06/970182/blig/blogdosblogs/2007_14.html#post_18817619 ) sobre o desfecho no STF da decisão sobre a fidelidade partidária? Parece que ele corrobora a tua avaliação do caso, não é? Assim, prevaleceria a tese levantada pelo min. Pertence. Bem, o negócio é aguardar.
Abraço

Mauro Noleto disse...

Os astros não confirmam, mas sinto cheiro de fumaça aqui na Praça dos Três Poderes, do lado direito de quem desce pelo eixo monumental.

Valeu pelo link, Cláudio.