Entrevista de Márlon Reis à Época: "por que político pode ter ficha suja?"
Revista Época - 17/08/2009 (pg. 54)
Em campanha por 1,3 milhão de assinaturas, o juiz quer vetar candidatos com condenação criminal
Há dez anos, um grupo de entidades juntou 1 milhão de assinaturas (1% do eleitorado) a favor de uma lei mais severa sobre compra de votos. Foi a primeira lei de iniciativa popular levada ao Congresso. Aprovada em menos de 40 dias, virou o principal instrumento de combate à corrupção eleitoral. Desde 1999, já serviu para cassar mais de 700 mandatos. Agora, as mesmas entidades querem repetir a dose. Criaram a Campanha Ficha Limpa e já coletaram 1 milhão de assinaturas a favor de uma lei sobre a vida pregressa dos candidatos. A ideia é vetar a candidatura de quem tem condenação na Justiça, mesmo quando ainda cabe recurso. Desta vez, precisam de 1,3 milhão de assinaturas, já que o eleitorado cresceu. O juiz Márlon Reis é um dos coordenadores do movimento. Ele explica os objetivos do projeto.
MÁRLON REIS
Juiz de Direito especializado em questões eleitorais e presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais. É um dos coordenadores do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Atualmente, faz curso de doutorado na Universidade de Zaragoza, na Espanha, sobre compra de votos em eleições.
ÉPOCA – O que diz o projeto de lei sobre a vida pregressa dos candidatos?
Márlon Reis – Ele estabelece que deve ficar afastado do processo eleitoral o candidato que sofreu condenação em ação penal pública por crimes considerados graves, como homicídio, estupro, narcotráfico, entre outros. Também vale para crimes relacionados à administração pública, como desvio de verbas. Hoje, a pessoa pode ser candidata enquanto não for julgada pelo último tribunal. Pelo projeto, basta sentença de primeira instância para impedir a candidatura.
ÉPOCA – E quais são os crimes pouco graves que permitiriam a candidatura?
Reis – Crimes de menor potencial ofensivo, como desacato, injúria, resistência à ordem de autoridade. Além disso, estão de fora as ações penais privadas, aquelas em que um particular pode mover contra outro. É para evitar que alguém faça isso com a finalidade de tumultuar a candidatura do adversário.
ÉPOCA – Muitas sentenças de primeira instância são reformadas em tribunais superiores. Não é injusto vetar a candidatura de quem ainda pode ser absolvido?
Reis – Eu entendo que a sentença penal de primeira instância deve ter algum significado, não pode ser considerada irrelevante. A sentença deve, no mínimo, acender um sinal amarelo. Pretendemos apenas que ela sirva para limitar uma candidatura. Existe, sim, a possibilidade de ser reformada. Mas há também a possibilidade de uma absolvição ser reformada. E mesmo decisões do último tribunal podem ser incorretas. A mensagem do projeto é a seguinte: se você recebeu uma sentença condenatória, então resolva primeiro sua pendência criminal e depois volte para a vida pública.”Há muitos parlamentares processados, mas o Supremo Tribunal Federal nunca condenou ninguém”
ÉPOCA – Mas a restrição à candidatura, por si só, já não é uma pena?
Reis – Não. Isso não é uma punição, é apenas uma restrição. Será uma medida preventiva. A lei vai limitar alguns aspectos da vida política do indivíduo, mas em defesa da sociedade. A Constituição permite ao Congresso editar leis que estabeleçam casos de inelegibilidade. Como o Congresso não fez isso até hoje, estamos mobilizando a sociedade para que cobre do Congresso essa providência.
ÉPOCA – O projeto não fere o princípio da presunção da inocência?
Reis – Ninguém pode ser juiz se tiver ocorrências em sua vida pregressa. Ninguém pode ser vigia se tiver problemas no passado, pois a Polícia Federal organiza um cadastro dos vigias e elimina quem tem condenação em qualquer instância. A regra, aliás, serve para todo o setor público. Por que com os políticos deveria ser diferente? Por que político pode ter ficha suja? O princípio da presunção da inocência serve para que o acusado não receba uma pena em caráter definitivo antes de ser julgado. Ele se aplica no Direito Penal, mas não no âmbito administrativo. Se fosse aplicar ao extremo o princípio da presunção da inocência, poderíamos ter uma pessoa condenada em duas instâncias por narcotráfico passando num concurso da Polícia Federal. Mas isso não acontece, é lógico. A PF elimina antes.
ÉPOCA – Quem será atingido?
Reis – Acho que, principalmente, os prefeitos de pequenas cidades que desviaram verbas. Isso porque, nos pequenos municípios, os prefeitos deixam de ser meros gestores e atuam como ordenadores de despesas. Então eles são identificados nos processos judiciais.
ÉPOCA – E os deputados federais, senadores, governadores?
Reis – Esses têm foro privilegiado e, portanto, nunca vão receber uma condenação de primeira instância. Para eles, a regra deve ser um pouco diferente. Eles devem ser afastados quando há o recebimento da denúncia. Por que a diferença? Porque, em tribunais superiores, o recebimento da denúncia é um ato bem mais fundamentado. Além disso, é decidido por um tribunal, não por apenas um magistrado. O recebimento da denúncia pela corte só é feito mediante a existência de provas de um ilícito e de elementos que liguem esses indícios ao acusado. É o suficiente para acender o sinal amarelo. Vale lembrar que há muitos parlamentares processados, mas o Supremo Tribunal Federal jamais condenou ninguém.
ÉPOCA – Durante o período de campanha, a Justiça consegue ser rápida. Pedidos de direito de resposta em propaganda eleitoral, por exemplo, são decididos em poucas horas. Por que não há a mesma agilidade após a eleição?
Reis – Deveria haver, mas há uma explicação legal para isso. A legislação estabelece uma prioridade para ações eleitorais durante o período eleitoral. Após a votação, no entanto, acaba a prioridade. Então, os processos que não foram resolvidos até a data da votação perdem a prioridade sobre os demais. Eu entendo que isso deveria ser mudado. A prioridade do processo eleitoral deveria valer até a conclusão da ação, independentemente da data da eleição.ÉPOCA – A campanha optou por coletar assinaturas. Não seria mais fácil pedir para um deputado fazer o projeto? Reis – Não seria difícil arrumar o apoio de parlamentares para apresentar o projeto. O que não se consegue é fazer com que o Parlamento vote a matéria. Há projetos sobre o tema que estão parados há dois anos. Com apoio popular, a esperança é que o Congresso se sensibilize para votar logo. Queremos que a lei da vida pregressa esteja em vigor já na próxima eleição.
ÉPOCA – A exigência de 1% de assinaturas do eleitorado para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular é alta, baixa ou adequada?
Reis – Parece adequada. O problema é que o Congresso só aceita assinaturas no papel, o que torna impossível a conferência. Quem vai checar? Hoje, com os recursos tecnológicos disponíveis, já poderiam aceitar como válidas as adesões feitas pela internet. Para evitar fraudes, basta fazer convênios com provedores confiáveis e aplicar alguns mecanismos tecnológicos para impedir identificações falsas ou repetidas.
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