domingo, 25 de fevereiro de 2007

A política, as milícias, o direito?

As milícias no Rio de Janeiro, grupos armados integrados por "homens da segurança pública", estão em destaque na Folha de hoje. Um dos líderes foi entrevistado, sob promessa de anonimato. Orgulhoso da proclamada vitória sobre o tráfico, o chefe dos milicianos não se incomoda em utilizar os mesmos métodos do tráfico para combatê-lo: o extermínio. Este trecho da reportagem ilustra bem a falta de preocupação com o problema ético:

Fim da procura e da oferta

Além de reprimir e tentar acabar com a oferta de drogas, as milícias atacam também os consumidores nas favelas."Viciado não pode usar drogas mais. Na primeira vez, a gente chama a atenção e avisa a família; na segunda, leva um pau [surra]. Aí levamos para a pastora, que encaminha para centro de reabilitação. Não acontece mais. Um cara foi pego quatro vezes. Hoje passa aqui com calça social, camisa de linho. Antes, entrava um cara aqui e acendia a maconha na sua cara, e a ia falar o quê?"Essa é a versão admitida pelo miliciano.

Mas, em reincidência, o usuário de droga pode ter o mesmo destino de seu fornecedor: o "microondas", forno arcaico montado com pneus e que derretem os corpos de inimigos fazendo que engrossem a contabilidade dos "desaparecidos" no Rio.

Segundo a polícia, as milícias invadem as comunidades, matam os traficantes ou provocam sua fuga e passam a controlar com mão-de-ferro os negócios da favela. Dão "proteção" a comerciantes e moradores em troca de pagamentos mensais."É a Santa Inquisição: "a gente mata por um bem maior". Chegam com arma na mão e se tiver confronto eles matam. A milícia surge da pobreza, a pretexto de salvar a comunidade dos traficantes, mas ela cai nas mãos de outra tirania, que não tem boas intenções: os objetivos são financeiros e políticos", afirma Alexandre Neto, da Delegacia Anti-Seqüestro.

Em setembro do ano passado, quando a milícia atuava para tomar parte das favelas na região, foram registrados dez homicídios na 30ª DP, responsável pela área.Foi o maior índice desde março de 2005 e representou aumento de 233% em relação a setembro do ano anterior. Em julho e agosto, houve duas e uma morte, respectivamente (em 2005 foram uma e cinco mortes nesses mesmos meses).

Pois bem, agora, ao que parece, as milícias terão uma bancada no Congresso Nacional. Segundo reportagens já mencionadas aqui e divulgadas no blog Deu no jornal, as regiões do Rio controladas por milícias tiveram participação eleitoral importante para 9 candidatos, 5 deles eleitos.

Na reportagem da Folha, chega-se, agora, a sugerir uma parceria com o Governo do Estado para regularizar o "gato-net", instalações clandestinas de TV a cabo.

É inegável o pluralismo jurídico instalado há muito tempo em regiões conflagradas como o Rio e outras cidades com problemas semelhantes. A eficácia da norma jurídica formal é mínima ou nula nesse contexto. Mas as conexões entre "legalidades" existem e são até desconcertantes para o mundo oficial.

A eleição dos representantes dos justiceiros pelo voto é um desses momentos estranhos de intersecção.

Pode-se até ficar assustado com a força eleitoral do movimento, mas não há ilegalidade nenhuma em eleger militares ou agentes civis de segurança.

Teria havido abuso de poder econômico?

Chamar as comunidades pobres, que recebem "assistência social" dos milicianos, de alvo do poder econômico exigiria um contorcionismo hermêutico de quebrar pescoços jurídicos ilustres.

Compra de votos?

A despeito do que possa ser demonstrado em processo judicial que esteja em curso (desconheço se há algum contra os deputados citados na reportagem), provar a compra de votos contra o poder de fogo (literalmente) dos milicianos seria um heroísmo.

O problema é bem maior do que essa permeabilidade entre legalidades, que permite o trânsito de lá pra cá e vice-versa. É de legitimidade.

As comunidades pobres sofrem com a tirania, mas ganham benefícios que nunca ganharam do Estado. Viveram sempre na indigência e sob a ameaça do tráfico. Agora, vão ao piscinão e ao baile funk sem tiroteio, recebem remédios, TV a cabo barata, cestas básicas, material de construção, ou seja, a hipótese do 41-A toda, bem de frente. Mas, quem testemunhará em processo judicial eleitoral para implicar-se e implicar todo a vizinhança em um crime eleitoral? E mais, se a comunidade apóia majoritariamente a ação dos justiceiros, tem formalmente o direito de eleger quem representar melhor esse interesses, que seriam os seus, dos cidadãos dessas comunidades.

O problema é dizer para os que estão para além do alcance da lei que não fiquem à mercê de justiceiros.

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