terça-feira, 29 de maio de 2007

Verticalização

A pedido da coordenação de pós-graduação em direito constitucional-eleitoral da Universidade de Brasília, escrevi um artigo que fará parte de obra coletiva a ser editada pela UnB. O livro contará com trabalhos de especialistas na área formados pela primeira turma do mencionado curso de pós-graduação. Meu artigo se chama: Terceiro Turno: a judicialização das eleições no Brasil e o "estilo tópico" da jurisprudência. Para os leitores d'APonte, adianto a introdução:
Introdução: breve crônica de um caso exemplar

Em 2002, ano eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral respondeu Consulta formulada pelo PDT sobre alianças políticas (Cta. 715) e editou a Resolução que instituiu pela primeira vez no Brasil a fidelidade estadual às coligações nacionais[i]. Ficou conhecida como a regra da verticalização de coligações partidárias. Essa nova regra, criada a partir da interpretação do art. 6º da Lei 9.504/97 feita pelo TSE, interferiu diretamente no jogo político-eleitoral de então. Foram surpreendidos todos os concorrentes; novos acordos precisaram ser firmados; tentativas judiciais no Supremo Tribunal Federal fracassaram... Mantida a regra, os candidatos disputaram a preferência popular e a eleição ocorreu no mais tranqüilo ambiente democrático.

Mas a verticalização de cima pra baixo, isto é, do plano federal para o estadual representa uma inversão tão acentuada na tradicional direção da política brasileira, feita nos estados e dos estados para a União, que o Congresso Nacional não deixou de se mobilizar. Porém, demorou demais em tomar a providência de promulgar a emenda constitucional que pretendia restaurar imediatamente o costume político. Demorou tanto que assistiu o STF julgar inconstitucional, à luz do art. 16 da Constituição, sua aplicação nas eleições de 2006.
Vale recordar, a propósito, o “duelo” entre os poderes Legislativo e Judiciário que, travado em 2002, repetiu-se em 2006. O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, no dia 8 de fevereiro de 2006, em segundo turno, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 548/02, do Senado, que acabava com a obrigatoriedade de verticalização das coligações nas campanhas eleitorais. A PEC, acatada por 329 votos favoráveis e 142 contrários, tornaria explícito na Constituição que “os partidos políticos terão autonomia para estabelecer os critérios de escolha e o regime de suas coligações”. Os partidos não seriam mais obrigados a vincular as alianças nas candidaturas em nível nacional, estadual ou distrital.

Ocorre que o Tribunal Superior Eleitoral, no dia 3 de março de 2006, respondendo consulta formulada sobre o tema, dessa vez feita pelo Partido Social Liberal (Consulta 1.185), manteve aberta a questão, ao afirmar, por cinco votos a dois, que a regra que vigorou nas eleições gerais de 2002 continuava valendo para as eleições gerais de outubro de 2006. A maioria dos ministros entendeu que modificar o entendimento da Consulta 715, que resultou na chamada verticalização, a menos de um ano da eleição, afetaria a segurança jurídica das decisões tomadas pela Corte, uma vez que, desde então (2002), não houvera qualquer questionamento sobre a legalidade da regra ou mudanças no ordenamento jurídico. Ou seja, o TSE examinou a questão à luz do ordenamento então vigente já que, na data do julgamento da Consulta do PSL, ainda não havia sido promulgada a nova emenda constitucional já aprovada sobre a matéria.

Pois bem, veio à luz, uma semana depois do pronunciamento do TSE, no dia 8 de março de 2006, a Emenda Constitucional nº. 52, que dá nova redação ao artigo 17, § 1º, da Constituição Federal, para assegurar aos partidos o poder de adotar, na forma da lei, os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais no âmbito nacional, estadual ou municipal sem a obrigatoriedade de vinculação. A validade, ou melhor, a eficácia dessa Emenda, no entanto, foi submetida ao exame do Supremo Tribunal Federal. O STF, em 22 de março de 2006, apreciando a ADI 3.685[ii], proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, julgou-a procedente, por maioria, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo que previa a aplicação do novo regime constitucional já para as eleições de 2006. Manteve, portanto, o entendimento do TSE sobre as coligações com fundamento no princípio da anualidade, previsto no art. 16 da Constituição.

Merece destaque a rapidez com que todo esse processo transcorreu. Apenas vinte dias entre o pronunciamento do TSE sobre a matéria (Consulta 1.185/06), a promulgação da EC 52 e o julgamento da ADIn 3.685/06. Tanta celeridade se explica facilmente. É que faltavam apenas três meses para o período das convenções partidárias que definiriam os candidatos para o pleito de outubro, assim como as eventuais alianças entre agremiações. É importante observar também que o Supremo, nessa ocasião, decidiu que uma emenda constitucional que altere regras do processo eleitoral não pode, por força do artigo 16 da Constituição da República (vacatio legis eleitoral), ter eficácia no pleito a se realizar no mesmo ano de sua promulgação. Mas, quatro anos antes, a resolução do TSE, que implantou a verticalização de coligações meses antes das eleições de 2002, pôde valer para discipliná-las, sem a oposição da Corte Suprema, que, em outra ADIn (2.626/02), declarou que aquela resolução não se caracteriza como ato normativo autônomo, mas apenas resultado da interpretação judicial da lei e, por isso, encontrava-se fora do alcance do controle abstrato de constitucionalidade.[iii]
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[i] Trata-se da Consulta 715-DF (Res. 21.002, de 26.2.02), que indagava o seguinte: “Pode um determinado partido político (partido A) celebrar coligação, para eleição de Presidente da República, com alguns outros partidos (partido B, C e D) e, ao mesmo tempo, celebrar coligação com terceiros partidos (E, F e G, que também possuem candidato à Presidência da República) visando à eleição de Governador de Estado da Federação?”
[ii] ADI 3.885 (STF), relatora Ministra Ellen Gracie, publicado no DJ em DJ 10-08-2006:
(...)
2. A inovação trazida pela EC 52/06 conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal, provocando, assim, a perda da validade de qualquer restrição à plena autonomia das coligações partidárias no plano federal, estadual, distrital e municipal.
3. Todavia, a utilização da nova regra às eleições gerais que se realizarão a menos de sete meses colide com o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da CF, que busca evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral (ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93).
4. Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. Min. Celso de Mello).
5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).
6. A modificação no texto do art. 16 pela EC 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico levado a efeito para facilitar a regulamentação do processo eleitoral.
7. Pedido que se julga procedente para dar interpretação conforme no sentido de que a inovação trazida no art. 1º da EC 52/06 somente seja aplicada após decorrido um ano da data de sua vigência.
[iii] ADIn 2626, relatora para o Acórdão, Ministra Ellen Gracie, publicado no DJ em 05.03.2004.
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PARÁGRAFO 1º DO ARTIGO 4º DA INSTRUÇÃO Nº 55, APROVADA PELA RESOLUÇÃO Nº 20.993, DE 26.02.2002, DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. ART. 6º DA LEI Nº 9.504/97. ELEIÇÕES DE 2002. COLIGAÇÃO PARTIDÁRIA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTIGOS 5º, II E LIV, 16, 17, § 1º, 22, I E 48, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ATO NORMATIVO SECUNDÁRIO. VIOLAÇÃO INDIRETA. IMPOSSIBILIDADE DO CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. Tendo sido o dispositivo impugnado fruto de resposta à consulta regularmente formulada por parlamentares no objetivo de esclarecer o disciplinamento das coligações tal como previsto pela Lei 9.504/97 em seu art. 6º, o objeto da ação consiste, inegavelmente, em ato de interpretação. Saber se esta interpretação excedeu ou não os limites da norma que visava integrar, exigiria, necessariamente, o seu confronto com esta regra, e a Casa tem rechaçado as tentativas de submeter ao controle concentrado o de legalidade do poder regulamentar. Precedentes: ADI nº 2.243, Rel. Min. Marco Aurélio, ADI nº 1.900, Rel. Min. Moreira Alves, ADI nº 147, Rel. Min. Carlos Madeira. Por outro lado, nenhum dispositivo da Constituição Federal se ocupa diretamente de coligações partidárias ou estabelece o âmbito das circunscrições em que se disputam os pleitos eleitorais, exatamente, os dois pontos que levaram à interpretação pelo TSE. Sendo assim, não há como vislumbrar, ofensa direta a qualquer dos dispositivos constitucionais invocados. Ação direta não conhecida. Decisão por maioria.

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