segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

"Em matéria eleitoral, vale é a idéia de limpeza ética."

Leia a entrevista concedida para os jornalistas Carolina Brígido, Alan Gripp e Diana Fernandes, do jornal O Globo:


O Globo — O senhor considera a Justiça Eleitoral capacitada para coibir crimes cometidos pelos candidatos em campanha?
Carlos Britto — Sim. Mas o gênero humano é pródigo no arranjo de fórmulas espúrias. A criatividade no campo da ilicitude é infinita. A cada momento nos deparamos e nos surpreendemos com formas inéditas de burlar nossa fiscalização.
O Globo — O que o juiz pode fazer para melhorar a Justiça Eleitoral?
Carlos Britto — Interpretar a legislação cada vez mais à luz da Constituição. Uma das questões mais debatidas ano passado foi a fidelidade partidária. A Constituição, que quer e exige fidelidade, faz do partido protagonista do processo eleitoral. Não há candidatura autônoma. O partido investe no candidato, o seleciona em convenção, abona o nome dele e cede espaços de propaganda para ele. De repente o eleito dá as costas ao partido com o mandato embaixo do braço. Acabamos com essa farra.
O Globo — Como eliminar o caixa dois?
Carlos Britto — Uma das formas é instituir o financiamento público de campanhas. Seria fundamental. Mas é possível fazer isso no plano jurisdicional. O TSE tem que entender que caixa dois significa abuso de poder econômico e causa perda de mandato. O tribunal está começando a ver dessa forma.
O Globo — Apesar de a lei permitir, o senhor concorda que pessoas com problemas na Justiça
possam se candidatar?
Carlos Britto — Não. A norma jurídica nem sempre se manifesta por explicitude. Também se manifesta por implicitude. Em 2006, o TRE do Rio negou registro a Eurico Miranda como candidato a deputado federal, dizendo que ele respondia a um número tão grande de processos que evidenciava vida pregressa incompatível com a pureza que se exige do candidato. Concordo. Fiz um voto longo. Acabei vencido, mas dois ministros me acompanharam. A decisão foi por 4 a 3 no TSE. Ele andou dizendo que eu devia ser flamenguista. Logo eu, que sou vascaíno antes dele!
O Globo — Isso não fere o princípio de que uma pessoa só é considerada culpada quando julgada em última instância?
Carlos Britto — Há um direito constitucionalmente assegurado, que é a presunção de não culpabilidade enquanto não haja sentença penal condenatória definitiva. Mas é em matéria penal. Em matéria eleitoral, vale é a idéia de limpeza ética. Quem não tem o passado limpo, quem não tem vida pregressa pautada na ética, não tem qualificação para representar o povo.
O Globo — A pessoa teria que ter condenação pelo menos em primeira instância, como Eurico?
Carlos Britto — Tem que ter. Mas isso tem que ser analisado caso a caso.
O Globo — São muitos os candidatos com problemas na Justiça...
Carlos Britto — Chamo isso, com todo o respeito, de interpretação leniente da Justiça, interpretação frouxa. Não está conforme o rigor da Constituição. A Justiça Eleitoral, quando recebe pedido de registro de candidatura, tem o dever de pedir informações sobre a vida pregressa da pessoa. Só pode ser político quem tem vocação para servir a coletividade, ou seja, espírito público.
O Globo — Não seria necessária uma lei para impedir isso?
Carlos Britto — O ideal seria uma nova lei. Mas a falta de lei não significa falta de direito.
O Globo — Não é temerário o Judiciário agir sem lei específica?
Carlos Britto — O legislador é incapaz de prever todas as possibilidades de tramóias. O direito padece dessa fragilidade estrutural. Não tem resposta normativa escrita detalhada para a infinitude das vias de obtenção de um mandato escusamente. Aí o Judiciário entra. Chega um ponto em que tem que partir para interpretações implícitas. Quando você usa os dois lados do cérebro equilibradamente, o da razão e o da emoção, faz um casamento por amor e tem um rebento chamado consciência. Acusam o Judiciário de substituir o legislador. Não é isso. Podemos, com sensibilidade, adquirir novo par de olhos.
O Globo — É possível que governos criem programas sociais em ano eleitoral?
Carlos Britto — Em tese, seria proibido, mas teria que analisar caso a caso. É possível que, a pretexto de implantar uma política social, se esteja desequilibrando a disputa eleitoral. O caso vai dizer.
O Globo — A lei eleitoral permite que políticos cassados há quatro anos sejam candidatos neste ano. Concorda com isso?
Carlos Britto — É uma falha de interpretação. Temos que evoluir na interpretação. O maior teórico do Direito, Hans Kelsen, dizia que o direito legislado é uma moldura aberta: cabe mais de uma interpretação, salvo raras exceções.
O Globo —Pela lei, a punição é de três anos, a contar da eleição em que o ilícito foi cometido.
Carlos Britto — Nunca recebi um processo desses. A primeira vez que receber acho que vou chegar a uma conclusão diferente. Os físicos quânticos observam que a matéria é feita de partículas e ondas que se interagem. O observador atento passa a desencadear reações no objeto investigado. Uma norma jurídica é o meu objeto. Vou conversar com ele, ler com cuidado e entrar num clima de empatia. De repente ele passa a se me dar por um ângulo insuspeitado. Ao nível da interpretação, o Judiciário pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema jurídico. Eu entro num clima dialogal com o texto.
O Globo — Todos os juízes deveriam proceder dessa forma?
Carlos Britto — Muitas vezes, o defeito não é da legislação. E é cômodo para o juiz dizer: “Vou lavar minhas mãos”. Dizem: “Não posso fazer nada”. Pode sim! Releia a lei. Não tenha pressa!
O Globo — O PT que o senhor ajudou a fundar é diferente do de hoje?
Carlos Britto — Sou muito de virar a página. Como toda pessoa que faz meditação oriental, um exercício de presentificação, você aprende a viver no presente. Virei essa página do meu vínculo com o PT.
O Globo — Mas renega esse passado?
Carlos Britto — De jeito nenhum. Foi muito importante para a minha formação, a minha visão de Brasil, o meu compromisso social.

Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2008

2 comentários:

Cláudio Ladeira de Oliveira disse...

Grande Noleto,
Como foram as férias? As minhas foram excelentes, excessão feita ao lamentável episódio de ontem no Maracanã.
Diga uma coisa: você não acha algo EXTREMAMENTE perigoso a posição defendida por Britto quanto à possibilidade de cassar judicialmente candidaturas bastando para tanto uma condenação em primeira instância? Veja o caso, por exemplo, de inúmeros deputados que são juizes ou promotores (ex. Capez PSDB/SP): não haveria o risco de que magistrados e promotores excluissem artificialmente do processo político candidatos que antipatizam?
Não acha que é perigoso abandonar por completo alguns princípios elementares do Direito bem benefício de super-poderes ético-judiciais que ninguém sabe ao certo assim como funcionam? Aliás, se essa postura é correta quando adotada em matéria eleitoral, então ela também é válida para matéria penal? Neste caso... adiós, direitos individuais.
Grande abraço e boa libertadores
Cláudio

Mauro Noleto disse...

Caro Ladeira,

Concordo com você. Acho bastante perigoso declarar a inelegibilidade, ou, para os mais puristas, reconhecer a ausência de condição de elegibilidade daqueles que tenham sido condenados criminalmente sem que tenha havido o trânsito em julgado dessa condenação. Nem o Ministro Marco Aurélio, que é bastante ativista, adotou essa posição no julgamento do pedido de impuganção do registro de candidatura do poderoso chefão daquele time carioca, o Vice da Gama. Para ele, deve prevalecer o princípio da presunção da inocência nesses casos.

Agora, sobre a judicialização das eleições e da política, creio que estamos num caminho sem volta, pois a filosofia do direito consagrou a teoria dos princípios para extamente dar poderes aos juízes que eles nunca tiveram. Na verdade, esse movimento, em meu modo de ver, revela a crise profunda da legalidade e de seu estandarte, a segurança jurídica. A grande pretensão da legalidade era regular com objetividade e impessoalidade o futuro, os comportamentos sociais futuros. Essa pretensão fracassou, seja porque não há estabilidade nas relações sociais, há riscos e complexidades, que fazem da tentativa legislativa uniformizante algo muitas vezes impossível se atingir, pois pode acarretar enormes injustiças na aplicação estrita do texto normativo; seja porque as próprias instituições legislativas a cada dia perdem mais espaço para o Executivo na formulação da regulação e, além disso, passam a maior parte do tempo tendo que explicar a conduta indecorosa de seus ilustres representantes. O Judiciário corre por fora e ganhou da filosofia as ferramentas da discricionaridade, antes restritas ao "governo". A diferença é que não as chamamos de conveniência e oportunidade, mas de proporcionalidade e razoabilidade.

Forte abraço.