sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Eleições americanas: confrontos decisivos

Folha de São Paulo, 15 de fev. 2008


POR MAIS que se fale em declínio do império, por mais que se fale de um mundo multipolar, sem dúvida em visível formação, o resultado das eleições norte-americanas terá importantes conseqüências internas e para os destinos do mundo. Não é por acaso, aliás, que as complicadas primárias, vem atraindo a atenção da mídia mundial e a participação de um número considerável de eleitores, no âmbito de uma disputa que começou bem cedo. Do lado republicano, a candidatura do senador pelo Estado do Arizona John McCain está praticamente assegurada. Político distanciado do "establishment" de Washington -centro de poder visto com desconfiança nos grotões americanos-, patriota, prisioneiro de guerra no Vietnã, o candidato republicano produziu uma reviravolta no sentimento derrotista predominante até há pouco no Partido Republicano, tornando-se um candidato forte nas eleições de novembro. Depois dos oito anos desastrosos do governo Bush, seria McCain um nome de centro, até com alguns tons liberais, como suspeitam os fundamentalistas de direita mais arraigados, que fazem restrições a seu nome? Há poucos sinais de que essa "suspeita" seja verdadeira. O senador pelo Arizona é um conservador na área do que os americanos chamam de "moral values" (valores morais) e apenas no caso da imigração mostra-se algo mais aberto. Na política externa, é um falcão de garras bem afiadas. Defende uma política de vitória no Iraque, mesmo a alto preço, e quer esticar a corda nas relações com o Irã, incorrendo em altos riscos para a estabilidade da região. É sempre possível que um candidato faça afirmações em campanha, ou antes dela, sem concretização quando no poder. Mas o exemplo de Bush deve ser levado a sério. Ele e seus assessores foram sinceros ao pôr em prática, em toda a extensão, a política assustadora prometida em seus escritos e discursos de campanha. Esse quadro aumenta a responsabilidade dos democratas, às voltas com uma disputa acirrada entre os senadores Barack Obama e Hillary Clinton. Quaisquer que sejam as diferenças programáticas entre os dois, muito depende da vitória de um ou de outro. Por exemplo, no plano dos valores morais, a continuidade e ampliação das pesquisas e da utilização das células-tronco, que permitem poupar milhões de vidas, hoje sujeitas a muitas restrições; ou o direito à livre escolha pelas mulheres no tocante ao aborto, assegurado, há anos, por uma decisão da Suprema Corte Americana, no famoso caso Roe versus Wade, pendente agora de um único voto revisor naquela Corte, depois de todas as indicações de juízes conservadores nos últimos tempos. Seria ilusório pensar que um ou outro dos candidatos democratas, se chegarem à presidência, revolucionariam a política americana. Mas eles teriam atitudes bem mais progressistas no campo acima apontado e em questões que interessam diretamente a todo o mundo, como as do meio ambiente e das relações internacionais. Nesta última esfera, as alternativas não se resumem a uma saída ordenada do Iraque, dizendo respeito à adoção de princípios de uma política externa multilateral que, sem arrogância, seja capaz de admitir parceiros, e que valorize os organismos internacionais, na busca de solução dos muitos conflitos antigos e novos, até mesmo os mais renitentes como é o caso do choque Israel-Palestina. Não é por acaso que muitas vozes respeitáveis vem defendendo a alternativa de uma chapa democrata formada pelos dois candidatos em disputa. Essa solução -simples no papel, complicada na ordem prática das coisas- ajudaria a curar feridas abertas na acirrada campanha e aumentaria as possibilidades de uma vitória do Partido Democrata. A união pode ser decisiva, no sentido de atrair o voto independente, o dos eleitores negros e latinos - independentes ou não -, facilitar a continuidade da "onda Obama", servindo ainda, quem sabe, para neutralizar a rejeição à senadora Hillary Clinton, por parte de muitos eleitores brancos. Pode parecer estranho, mas na atual disputa pela presidência americana, o preconceito de raça vem dando lugar ao preconceito de gênero, responsável por parte dos índices de rejeição da senadora. Análises à parte, uma mulher e um negro (para os padrões americanos), ou, se quiserem, um negro e uma mulher, ambos com inegáveis qualidades pessoais, liderando os Estados Unidos, seriam um assombro -um assombro muito positivo- para aquele país e para o mundo.

BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Nenhum comentário: