Para entender o contexto do novo Direito Eleitoral
A cada dois anos realizam-se eleições no Brasil, intercalando a escolha para a composição dos poderes políticos municipais, com os chamados pleitos gerais, que escolhem, a partir dos Estados, os governantes e legisladores da federação e o Presidente da República. Desde o ano 2000, as eleições estão completamente informatizadas, o que significa a virtual extinção das fraudes nos procedimentos de coleta e de totalização dos votos. Atingimos o grau máximo de universalização do sufrágio. Pode-se votar desde os 16 anos de idade, não há restrições de sexo, classe, instrução. Os dados do TSE de julho de 2008 mostravam o impressionante número de 130.603.787 eleitores aptos a votar.
Todavia, a prática de eleições livres, universais e periódicas não é, como se sabe, uma prática constante na história nacional, o que apenas reforça a importância do Direito Eleitoral no presente contexto democrático e constitucional que vivemos, aliás, o maior período ininterrupto de estabilidade institucional jamais experimentado em toda a história republicana. Mas a memória recente exige que se examinem com atenção os fundamentos democráticos de nossa sociedade, suas bases constitucionais, certamente, mas também seus fundamentos políticos: o sistema partidário pulverizado e a prática de alianças eventuais e de infidelidade partidária, a crise de legitimidade das instituições políticas, as fórmulas de representação e a crise do modelo proporcional, o esgotamento ético do sistema de financiamento de campanhas... Todos esses problemas de cunho essencialmente políticos são hoje debatidos no Congresso Nacional no contexto da reforma política, sem que até agora tenha sido alcançado algum consenso capaz de transformá-la em lei.
E é exatamente no momento em que o Poder Legislativo se enfraquece diante do Executivo costumeiramente mais forte e interventivo, e que nos últimos anos praticamente monopolizou a prática legislativa com a edição de medidas provisórias, é nesse momento que emerge no Brasil, visível e perturbador, o fenômeno da judicialização da política. O Judiciário tem preenchido com extrema facilidade as lacunas regulatórias deixadas pelo Legislativo, por meio dos instrumentos processuais novos criados pela Constituição de 1988, mas também por aplicação direta dos valores e princípios nela consagrados. A presença ativa e intensa do Judiciário na arena de decisões políticas levou a estudiosa Maria Tereza Sadek à seguinte observação:
“A rigor, esse quadro marcado pela presença do Judiciário na arena pública não é novo. A novidade está em seu robustecimento, em sua profusão de cores e contrastes. A constitucionalização deu ensejo a uma atuação ampla por parte do Judiciário e particularmente de sua corte suprema, o STF. Não é acidental que o Supremo seja levado a se pronunciar sobre tantos assuntos e menos ainda que eles digam respeito a tão ampla gama de temas. A Constituição de 1988 consagrou extenso rol de direitos, conferiu condições que garantem status de poder ao Judiciário, ampliou o número de legitimados com acesso direto ao Supremo. Ademais, a expressiva judicialização de questões políticas, econômicas e sociais implicou a composição dos tribunais como arena de disputas políticas e instância decisória final.”
No campo eleitoral, esse fenômeno é agudo e revela seus próprios contrastes, tanto no âmbito da jurisdição do Supremo, quanto na mui peculiar jurisdição eleitoral. Foi no TSE que o Judiciário promoveu as três maiores tentativas de reformas no sistema político: a verticalização de coligações partidárias, a regra de fidelidade partidária que pune com a perda do mandato o político que sai do partido pelo qual se elegeu e a vida pregressa como causa de inelegibilidade dos políticos. Essas e outras decisões importantes do TSE foram confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal, seja para reforçar a mutação, seja para impedi-la.
Mas, a judicialização das eleições é um fenômeno próprio, quer dizer, ela se projeta para além dessas grandes questões políticas e alcança o cotidiano da cidadania naquele seu momento de maior disputa, as campanhas eleitorais, onde se concentra a regulação jurídica das leis eleitorais. É durante as campanhas eleitorais que ocorrem os fatos jurídicos mais palpitantes do Direito Eleitoral:
· Os pedidos de registro de candidatura e as eventuais impugnações por inelegibilidade;
· A formação de coligações partidárias;
· A propaganda eleitoral e suas eventuais impugnações e pedidos de direito de resposta;
· As práticas eleitorais abusivas (abuso de poder político, econômico ou de mídia) e as ações que buscam coibi-las.
· A captação ilícita de sufrágio (“compra de voto”) e as ações que buscam coibi-la.
· A arrecadação de recursos de campanha e as respectivas prestações de contas.
A consolidação do regime democrático, a competitividade e o acirramento das disputas, a extensa cobertura normativa e a melhoria das assessorias jurídicas de partidos e candidatos têm feito aumentar a demanda de ações e recursos que trazem para o campo da jurisdição eleitoral aspectos e fatos controvertidos surgidos no ambiente da competição política. Alie-se a tudo isso a instabilidade que parece caracterizar o ambiente político - as idas e vindas da legislação em matéria eleitoral emprestam a esse ramo especializado um traço particular de dinamismo e transitoriedade – e será fácil constatar que o estudo do Direito Eleitoral é imprescindível para que se possa acompanhar melhor a evolução da democracia no Brasil.
Mas não é só. Como em nenhum outro ramo do Direito, é no campo eleitoral que se tem feito sentir a presença criativa da jurisprudência. Em primeiro lugar, em razão da competência normativa do Tribunal Superior Eleitoral, que está autorizado a editar Instruções para o aperfeiçoamento da legislação eleitoral, além da competência de que dispõe para responder consultas sobre a interpretação em tese das normas eleitorais. Mas, também no exercício de sua competência propriamente jurisdicional, o Tribunal tem avançado bastante sobre a letra da lei. É, aliás, na experiência recente da prática judicial eleitoral que se encontram exemplos contundentes do caráter criativo da jurisprudência, especialmente no âmbito do TSE.
Não obstante, a jurisprudência sobre eleições, apesar das oscilações freqüentes, tem construído um campo diferente – demarcado pelo Direito – para a disputa política, o processo judicial eleitoral. As cláusulas constitucionais das condições de elegibilidade, das inelegibilidades, da proteção da liberdade do voto e da igualdade na disputa contra o abuso do poder político e a má e abusiva influência do poder econômico são o núcleo fundamental do Direito Eleitoral. Inspiram a legislação complementar e ordinária (inelegibilidades da legislação complementar, condutas vedadas, captação ilícita de sufrágio, sanções de perda do registro e do diploma), assim como estabelecem as balizas mais gerais para a formação da jurisprudência.
Inevitável que, com essa farta regulação das condutas que os agentes políticos impuseram a si próprios, as disputas, em alguns momentos, passassem a ser travadas também no processo judicial. Acessada pelos competidores ou pelo Ministério Público, a Justiça Eleitoral acaba por intervir no jogo político, julgando os litígios. Decide sempre pressionada pelo fator tempo e, quando sua decisão é posterior ao resultado do pleito, também recebe o peso da manifestação dos cidadãos que, bem ou mal, fizeram sua escolha pelo sistema mais seguro contra fraudes jamais praticado em nossa história de eleições, o voto eletrônico. Sistema que foi desenvolvido e é administrado pela própria Justiça Eleitoral.
Por outro lado, quando é o próprio Direito (constitucional, complementar e ordinário) que ordena a repressão ao abuso de poder nas práticas eleitorais, promove também uma relativização do postulado talvez mais essencial à idéia de democracia, a soberania popular. Judicializada uma eleição em que não há fraude sistêmica na coleta e na apuração dos votos, é a escolha popular que, litisconsorte, vai a juízo.
Tal situação haveria de conduzir a jurisprudência a situações difíceis, bifurcadas, em que pesam valores em choque vitais para saúde da democracia. De um lado, a regra da maioria que dá legitimidade às decisões em regimes democráticos, de outro, a justa disputa de opinião – sem coações ou abusos – em busca do convencimento do cidadão-eleitor.
É nesse contexto de escolhas tão difíceis quanto necessárias para a realização de eleições livres, mas também honestas, que se apresentam as principais questões do Direito Eleitoral contemporâneo.
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