segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

As Eleições na Justiça - a pesquisa II

Como estava dizendo, minha hipótese de pesquisa foi formulada no terreno metodológico e partiu do seguinte problema:


  • Que tipo de raciocínio decisório poderia está relacionado à transitoriedade jurisprudencial que se observa no TSE?
  • Com que método de julgamento e sobre que bases normativas se constrói essa instância cognitiva dos fatos jurídicos eleitorais, a jurisprudência?

Sustento que o método ou o raciocínio decisório que melhor se encaixa no campo eleitoral é a tópica jurídica. Não vejo como aplicar à jurisprudência eleitoral um olhar dedutivista, formalista ou idealista. Parece não haver, nesse campo, um sistema de regras e princípios uniforme e perene o suficiente para permitir a segurança jurídica das deduções: soluções previamente caracterizadas nos preceitos aplicáveis ao fato social, no caso, os fatos político-eleitorais.

Não me propus a responder a pergunta Por que se decidiu assim e não assado? Mas como se decidiu assim e assado? (com as devidas vênias pela metáfora)

Até pouco tempo havia um "costume" consagrado. A edição de lei específica para reger cada eleição. É o famoso casuísmo das regras do jogo. Regras criadas pelos jogadores em disputa, diga-se. Esse casuísmo, há quem o considere inerente ao jogo, caso do professor Torquato Jardim que declarou aqui nos diálogos que "o horizonte do direito eleitoral é a próxima eleição".

É até esperado que haja mesmo muita alteração da jurisprudência provocada exclusivamente por mudanças de parâmetro normativo. Mas, no período pesquisado (última década), pude catalogar alterações importantes e profusas na posição da jurisprudência do TSE, sem que tivesse ocorrido mudança legislativa estrutural. As mudanças houve, mas também elas tópicas.

No regime das inelegibilidades, é bom ressalvar, a alteração veio com a inédita possibilidade da reeleição e isso afetou bastante a compreensão dos impedimentos, dando margem a uma onda de alterações na jurisprudência. Esse universo estava, no entanto, fora dos limites imediatos da pesquisa, que se voltou para o problema da caracterização e julgamento do abuso de poder (político e econômico), aí incluídas as chamadas condutas vedadas e a captação ilícita de sufrágio.

Cheguei a montar um catálogo de tópicos argumentativos que funcionam como premissas das matrizes decisórias, os paradigmas ou modelos. Verifiquei que os tópicos permanecem, mas os paradigmas são alterados com frequência. Isso porque à falta de parâmetros normativos estáveis, isto é, na ausência de regras que favoreçam a pura dedução lógico-formal, o silogismo, o direito eleitoral é hoje um campo em que predominam os princípios, cláusulas gerais, conceitos fluidos que dão margem à construção argumentativa caso a caso.

Catálogo de tópicos argumentativos/decisórios:

  • Possibilidade/impossibilidade/possibilidade de que o candidato que deu causa à anulação de um pleito possa participar da renovação dessa mesma eleição[i];
  • Necessidade de provar-se - não o nexo de causalidade, entendido esse como a comprovação de que o candidato foi eleito efetivamente devido ao ilícito ocorrido – mas que a conduta abusiva de candidato tenha potencialidade para influir no resultado da eleição, alterando o equilíbrio entre as candidaturas em disputa[ii];
  • A despeito do princípio da coisa julgada, a condenação pela prática de captação ilícita de sufrágio produz efeitos imediatos[iii];
  • Para configuração da conduta vedada pelo art. 73 da Lei das Eleições, não há necessidade de se perquirir sobre a existência ou não da possibilidade de desequilíbrio do pleito, o que é exigido no caso de abuso (genérico) de poder.[iv]
  • As condutas vedadas aos agentes públicos devem ser examinadas com base no princípio da razoabilidade e de uma reserva legal proporcional[v].
  • Para efeito de coligações partidárias, quando se tratar de eleições simultâneas, a circunscrição nacional engloba as demais. (c.f. capítulo II).

A jurisprudência reflete esse casuísmo e ela própria também torna-se presa do casuísmo, pois com parâmetros de julgamentos tão abertos como o que se encontra no artigo 237 do Código Eleitoral e que supostamente qualifica juridicamente o fato social do abuso de poder, não se poderia esperar a segurança jurídica de um tipo penal, por exemplo.

  • Art. 237. A interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos.

A cláusula aberta é extamente o avanço do poder sobre a liberdade de escolha do eleitor. Porém, como caracterizar esse abuso sem examinar os fatos peculiares da causa, apreciar suas circunstâncias? E, apreciando as circunstâncias, como não realizar ponderações, examinar os fatos com as lentes da razoabilidade?

Bem, mas não é assim mesmo que ocorre em todo processo?

Nas instâncias ordinárias, sim, mas o TSE é uma instância especial, não deveria supostamente examinar fatos e provas para aferir, por exemplo, a potencialidade lesiva ao equilíbrio da disputa que uma determinada prática eleitoral de candidato tida por abusiva tenha acarretado, e então, com base nessa aferição, decidir se cassa, expulsa ou não, o acusado da competição política. Não obstante, esse tópico da potencialidade foi criado pelo próprio TSE com a finalidade inicial de dar mais eficácia à repressão ao abuso de poder e, hoje, é amplamente utilizado no julgamento de recursos especiais eleitorais, tanto para cassar quanto para absolver candidatos.

Aliás, esse problema da apreciação das circunstâncias de cada caso em sede de recurso especial eleitoral também vem sendo superado argumentativamente com a distinção que é feita entre apreciação da prova e valoração da prova.

Mas, para completar o parâmetro normativo de julgamento do abuso de poder, há ainda a disciplina constitucional, também esta composta por conceitos, cuja compreensão ou construção prática depende de interpretação:

  • Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
    (...)
    § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação da EC de Revisão nº 04/94)
    § 10 - O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.

Espero ter podido demonstrar, no trabalho, a adequação da teoria tópica para descrever modos de decidir muito presentes nos acórdãos da Corte eleitoral superior.

Mais do que isso, talvez pelo privilégio de ter atuado como servidor daquele Tribunal, primeiro na honrosa função de Chefe de Gabinete da Presidência do Min. Pertence e depois como Coordenador da Escola Judiciária Eleitoral, pude acompanhar de perto alguns momentos históricos. E para mim era nítido o dilema que com frequência se colocava aos sete ministros durante os debates acalorados no Plenário. O dilema entre assumir uma postura ativa ou ativista frente aos fatos alegadamente ilícitos da disputa política ou, mais cautelosamente, abster-se de interferir nos resultados da vontade popular, adotando o que se pode chamar de postura absenteísta, ou de direito eleitoral mínimo.

Creio que se pode resumir esse dilema no seguinte trecho de um voto do Ministro Gilmar Mendes:

  • “Senhor Presidente, tenho destacado que a Lei como um todo, que é extremamente restritiva, tem de ser interpretada em consonância com o princípio da proporcionalidade – trata-se de uma imposição do sistema constitucional. (...)”.
    “Neste caso, há razões ainda mais fortes em questões que envolvem a manifestação da vontade popular, porquanto uma posição intervencionista do Tribunal, ativista, envolve, em muitos casos, fraudar a vontade popular”.
    “Falou-se aqui em psiquiatria e, de fato, muitas vezes cogitamos disto: a Justiça Eleitoral está se tornando divã de perdedores de eleição, de pessoas que não têm voto e têm de se explicar depois via processo eleitoral. É preciso dar um paradeiro nisso. Não temos de resolver problemas de advogado que precisa de causa nem de candidato que perdeu a eleição. De modo que esta lei há de ser aplicada, independentemente da sua literalidade, com base no princípio da proporcionalidade"
    (Respe 25.016, Min. Peçanha Martins. DJ 17.6.05).

Não esperava encontrar tudo isso e descobri que o campo do direito eleitoral é ainda muito mais fecundo e criativo. Todavia, ironia, uma coisa é certa:

(...) O casuísmo das regras eleitorais, a vagueza de alguns de seus enunciados centrais, aliados à intensa rotatividade dos juizes eleitorais, no entanto, têm acarretado uma situação bastante peculiar: quando uma eleição é judicializada, desde que haja possibilidade de cassação do registro ou do diploma de alguns dos candidatos em disputa, seus resultados continuam incertos, às vezes, mesmo depois da apuração dos votos.

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[i] MC 995, relator: Min. Sálvio de Figueiredo (Goianira-GO); RESPE 18878, relator: Min. Madeira (Ribas do Rio Pardo-MS; RESPE 25127, relator: Min. Gomes de Barros (Ibirarema-SP).

[ii] RO 752, relator: Min. Fernando Neves (Guaçui-ES), DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 06/08/2004, Página 163.

[iii] MC 994, relator: Min. Fernando Neves (Chapada dos Guimarães). DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 15/10/2001, Página 133.

[iv] Respe 21167, relator: Ministro Fernando Neves. DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 12/09/2003, Página 122. RJTSE - Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 14, Tomo 3, Página 172.

[v] AG 4592, relator: Min. Gilmar Mendes (Jundiaí-SP). DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Tomo -, Data 09/12/2005, Página 142.

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