segunda-feira, 26 de março de 2007

As Eleições na Justiça - capítulo III

No último capítulo do meu trabalho, realcei um fato que, para mim que pude acompanhar de perto muitos julgamentos no TSE, era evidente: as situações bifurcadas da jurisprudência, encruzilhadas éticas, aporias. Julgar as condutas políticas sem se chamuscar é muito complicado. Daí porque sugeri a hipótese de mimetismo entre o direito eleitoral e a própria prática política... É melhor trascrever um trecho:

Estudo mais minucioso da jurisprudência recente do TSE talvez possa confirmar que essas características (argumentação tópica, criatividade e mutabilidade) são reflexos de algo ainda mais profundo.

A jurisprudência de um Tribunal é construída sobre conflitos, isso é elementar. Mas tem a difícil tarefa de interromper formalmente esses conflitos. O que particulariza a situação atual da jurisprudência eleitoral é o dilema, que se coloca de modo recorrente nos debates decisórios do TSE, em torno dos princípios de sua própria atuação. Esse dilema se expressa na dicotomia entre os que defendem um comportamento decisório mais abstencionista, mais liberal e minimalista contra o que se considera excessivamente ativista, rigoroso e intervencionista na interpretação do Direito Eleitoral.

A permanência desse dilema tem propiciado, no TSE, a ocorrência de uma prática decisória pródiga na construção de tópicos argumentativos. Veja-se, por exemplo, o seguinte catálogo:

· Possibilidade/impossibilidade de que o candidato que deu causa à anulação de um pleito possa participar da renovação dessa mesma eleição[1];
· Necessidade de provar-se não o nexo de causalidade, entendido este como a comprovação de que o candidato foi eleito efetivamente devido ao ilícito ocorrido, mas que a conduta abusiva de candidato tenha potencialidade para influir no resultado da eleição, alterando o equilíbrio entre as candidaturas em disputa[2];
· A despeito do princípio da coisa julgada, a condenação pela prática de captação ilícita de sufrágio produz efeitos imediatos[3];
· Para configuração da conduta vedada pelo art. 73 da Lei das Eleições, não há necessidade de se perquirir sobre a existência ou não da possibilidade de desequilíbrio do pleito, o que é exigido no caso de abuso (genérico) de poder.[4]
· As condutas vedadas aos agentes públicos devem ser examinadas com base no princípio da razoabilidade e de uma reserva legal proporcional[5].
· Para efeito de coligações partidárias, quando se tratar de eleições simultâneas, a circunscrição nacional engloba as demais (cf. capítulo II).

Os exemplos dessa situação dilemática (intervencionismo ou abstencionismo) são freqüentes na jurisprudência do TSE depois da vigência da Constituição de 1988, principalmente no tocante aos litígios que envolvem o abuso de poder político, o abuso de poder econômico e de mídia e a captação ilícita de sufrágio. Em todas essas matérias, destacam-se o caráter transitório ou instável das decisões, os elementos tópicos presentes no discurso argumentativo e a criatividade ou o ativismo judicial. O grande problema da jurisdição eleitoral – um dos mais importantes, ao menos – é a imposição de uma repressão eficaz ao abuso de poder nas campanhas eleitorais. Nessa matéria, encontram-se os verdadeiros hard cases da Justiça Eleitoral. Os problemas hermenêuticos, no entanto, começam ou decorrem da própria norma de regência, pois: como caracterizar a interferência ilícita do poder econômico ou o abuso de poder de autoridade contra a liberdade do voto, de que trata a cláusula geral do art. 237 do Código Eleitoral?


"Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou em outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Em razão dessas características, esta técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via jurisprudencial, e não legal.

Considerada, pois, do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente "aberta", "fluida" ou "vaga", caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico. Esta disposição é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual não só resta assegurado o controle racional da sentença como, reiterados no tempo fundamentos idênticos, será viabilizada, através do recorte da ratio decidendi, a ressistematização destes elementos, originariamente extra-sistemáticos, no interior do ordenamento jurídico." (COSTA, Judith Hofmeister Martins. O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=513>. Acesso em: 6 abr. 2006.)

Com tanta margem para a interpretação construtiva, em matéria de abuso de poder, a jurisprudência do TSE merece ser examinada e acompanhada com estreita freqüência, senão apenas por interesse prático, mas também pela relevância teórica de conhecer os elementos externos ao sistema normativo empregados para a formação da ratio decidendi.
------------------
[1] MC 995 (Goianira/GO), relator Ministro Sálvio de Figueiredo, publicado no DJ de 8.6.2001, p. 119; Respe 19.878 (Ribas do Rio Pardo/MS), relator Ministro Luiz Carlos Lopes Madeira, julgado em 10.9.2002 e publicado em sessão em 10.9.2002, RJTSE, volume 13, tomo 4, p. 279; Respe 25.127 (Ibirarema/SP), relator Ministro Gomes de Barros, julgado em 17.5.2005 e publicado no DJ de 12.8.2005, p. 159.
[2] RO 752 (Guaçui/ES), relator Ministro Fernando Neves, publicado no DJ de 6.8.2004, p. 163. [3] MC 994 (Chapada dos Guimarães/MT), relator Ministro Fernando Neves, publicado no DJ de 15.10.2001, p. 133.
[4] Respe 21.167 (Vitória/ES), relator Ministro Fernando Neves, publicado no DJ de 12.9.2003, p. 122, RJTSE, volume 14, tomo 3, p. 172.
[5] AG 4.592 (Jundiaí/SP), relator Ministro Gilmar Mendes, publicado no DJ de 9.12.2005, p. 142.

Nenhum comentário: