Supremo legislador?
As perguntas que não querem calar
Maria Inês Nassif
As sucessivas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que transbordam da sua função de intérprete constitucional deflagaram um intenso debate sobre a legitimidade que têm os tribunais superiores de legislar. A defesa do papel de legislador assumido pelo STF vem acompanhada da observação de que o tribunal decide no vácuo legal deixado pelo Congresso, ou corrige as imperfeições próprias do processo legislativo. Esse argumento traz subjacente o pré-conceito de que a política é ruim em si e o processo legislativo - aquele que decorre de um mandato obtido pelo voto - é imperfeito porque não é seletivo (Como convencer a plebe a eleger gente que entende de lei? Como defender o país dos interesses político-eleitorais que impregnam as leis feitas pelo Legislativo? Como limpar o processo legislativo dos vícios e pecados inerentes à política?) Traz também o pré-conceito de que, como força descolada da política, e portanto não maculada por ela, o STF não apenas pode, mas deve, definir o que é justo, independente do que os legisladores legislaram. Quando uma decisão "histórica" chega ao mundo real, todavia, fica difícil achar que o STF é infalível em qualquer assunto. No caso da decisão sobre a fidelidade partidária, que definiu o mandato como propriedade do partido, essa concepção genérica chega cheia de falhas, especialmente porque contraria um "espírito" consagrado na lei eleitoral e partidária, que teoricamente deve reger o processo político. Os ministros do STF festejaram a decisão sobre a fidelidade dizendo que, de uma penada, tinham conseguido derrotar uma tradição da política brasileira, a infidelidade, mas é difícil mudar uma "cultura" quando todo o corpo legal traz a lógica daquela que foi entendida como má cultura pela Corte Suprema. O Valor publicou na edição de ontem um relato sobre a perplexidade de 35 advogados integrantes do Instituto de Direito Político-Eleitoral, em reunião na segunda ("Perplexidade domina debate sobe fidelidade", de César Felício, pág. A6). A partir do dado definido pelo STF - o mandato é do partido, e não do titular do cargo eletivo - os especialistas no assunto eram um poço de perguntas sem respostas. Se, por exemplo, um candidato é eleito em coligação, quem assume o seu cargo no caso de vacância por infidelidade? O suplente de outro partido? Se um deputado é cassado deve ser feita a revisão do quociente eleitoral (que define se a legenda tem direito a representação ou não nos Legislativos)? Se um suplente é expulso por infidelidade, a que instância do Judiciário ele pode recorrer, já que, sem mandato e sem ser diplomado, não pode apelar ao TSE? Quem é parte legítima para retomar o mandato parlamentar? O TSE deve definir hoje algumas regras para cassação dos mandatos, mas a simples listinha de dúvidas acima deixa claro que o TSE e o Supremo entraram numa seara onde terão de legislar de forma permanente simplesmente porque a decisão isolada de obrigar a fidelidade partidária não combina com o conjunto da obra, que é a legislação eleitoral e partidária.
É certo dizer que é muito difícil o Congresso aprovar qualquer alteração eleitoral, já que os parlamentares tendem a não mudar as regras que os elegeram. Mas quando o Congresso, ao não conseguir aprovar o voto por lista, deixou de lado o projeto que instituía o financiamento público de campanha e as demais mudanças contidas na reforma política, inclusive a fidelidade partidária, tinha suas razões para isso. O voto por lista (que valeria só para os Legislativos) seria, ele sim, uma mudança radical na cultura política do país - e, se instituído, tornaria os mandatos inquestionavelmente dos partidos, e a própria lista seria uma regra de preenchimento do cargo legislativo, no caso de cassação de mandato parlamentar por infidelidade. Para votar regras rígidas contra a infidelidade (com ou sem as listas), o Congresso teria de rever as coligações para as eleições proporcionais. Elas foram um artifício muito usado pelos pequenos partidos para garantir representação parlamentar mesmo sem terem obtido individualmente a votação mínima para atingir o quociente eleitoral. Com voto em lista, e/ou sem coligação nas proporcionais, estariam assentadas as bases para a definição da pena extrema, a perda de mandato, por infidelidade partidária. A lista seria, ela própria, um critério de preenchimento do cargo tornado vago devido à cassação por infidelidade. Sem a lista, com o fim das coligações proporcionais seria possível definir um suplente do próprio partido - aquele imediatamente abaixo do parlamentar cassado em número de votos. Como se vê, a proposta que se arrasta há mais de uma década no Congresso tem lógica, pelo simples fato de que os legisladores deram lógica a ele. Se não foi aprovada é porque eles quiseram manter as regras eleitorais e partidárias tais como sempre existiram. Era uma opção dos parlamentares eleitos. A falta de mecanismos legais de depuração dos partidos, no entendimento dos parlamentares, não foi razão suficiente para se alterar profundamente as regras. Assim eles entenderam. E talvez tenham razão. Não se pode atribuir a uma "cultura" o fato de existir uma grande mobilidade partidária em alguns partidos, e em outros não. O que define, por exemplo, que o PT e o PCdoB tenham uma mobilidade que tende a zero, e o PMDB uma enorme mobilidade? Por que razão o PT, quando era oposição, tinha uma coesão total - e porque, já no governo, teve tão poucos ingressos ou defecções? Por que as bancadas do ex-PFL e do PSDB oscilam de acordo com suas posições em relação ao poder federal? A resposta a essas perguntas não favorece a idéia de que o STF é o ator fundamental no processo de modernização da política. O fato é que existe diferença entre os partidos - e se o problema fosse simplesmente a lei, não haveria razão para um PT ter um alto grau de coesão e um PFL um alto grau de mobilidade. O fato é que as leis, por mais iluminadas que sejam, não alteram a história. O país tem uma história e uma "cultura" que não são transformáveis por decreto; e os partidos têm a sua própria história, que nenhuma lei de fidelidade pode alterar na sua substância.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião do jornal Valor Econômico. Escreve às quintas-feiras
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