INCONSTITUCIONALIDADES AMEAÇAM AS NORMAS QUE REGEM AS ELEIÇÕES
As organizações e juristas abaixo assinados vêm a público apresentar suas considerações acerca da reforma eleitoral em andamento objetivando alertar o Congresso Nacional e a sociedade quanto à ocorrência de diversas inconstitucionalidades no texto aprovado pela Câmara dos Deputados e agora submetido à apreciação do Senado.
A Constituição de 1988 afirmou princípios cuja observância deve ser garantida em todos os processos eleitorais. Os princípios que norteiam a Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – não só são aplicáveis aos processos eleitorais em virtude da sua natureza eminentemente pública, como ademais se irradiam para a órbita dos partidos políticos, que a par da sua natureza privada devem imediato respeito ao princípio da supremacia do interesse público.
Embora o projeto mereça ainda outros reparos, inclusive de natureza técnica, os subscritores apresentam abaixo apenas os tópicos em que considera flagrante a inconstitucionalidade do projeto de lei, cuja eventual aprovação certamente renderá a discussão da sua validade jurídica pela via do controle concentrado da constitucionalidade das leis e atos normativos.
I - Comunicação social por meios eletrônicos
A comunicação social realizada por meio da internet, inclusive a postada em páginas mantidas por provedores de acesso não podem estar limitadas pela impossibilidade de emissão de juízos favoráveis ou desfavoráveis a candidatos, partidos, coligações ou representantes políticos, tal como quer o art. 57-D do projeto de lei em combinação com o art. 45, III, da Lei das Eleições. A regra deveria cingir-se a proibir expressamente as referidas empresas de “dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação”, nunca procurar influir sobre a sua liberdade de expressão jornalística. Essa medida sufoca a liberdade crítica das atividades de comunicação realizadas por meio da internet, afrontando a um só tempo o disposto no art. 5º, I (liberdade de manifestação do pensamento) e II (liberdade dos meios de comunicação), e no art. 221 da Constituição de 1988.
II - Rejeição de contas: retrocesso e impunidade
Não é possível premiar o candidato que teve rejeitadas as suas contas em virtude de graves erros materiais (tais como fraude, corrupção, omissão de informações essenciais etc.) com uma certidão de que está em dia com as suas obrigações eleitorais. É o que decorre da aplicação do texto proposto para o § 7º do art. 11 da Lei das Eleições. A mera apresentação das contas não pode bastar à concessão da referida certidão, sob pena de afronta ao princípio constitucional da moralidade e da publicidade ou transparência (art. 37 da Constituição). A rejeição das contas por vícios materiais deve constar das informações oficiais acerca do candidato sob pena de tornar-se irrelevante a adoção da medida, por mais graves que tenham sido os motivos para sua tomada. Para livrar-se da sua inconstitucionalidade, o texto deveria determinar a inclusão de referências à eventual rejeição das contas de campanha por vícios de mérito.
III - Registro das candidaturas: a surpresa como regra
O projeto de lei permite que venham a ingressar na disputa candidatos que vierem a tornar-se elegíveis só depois de ultrapassado o período ordinário de registro (ver novo § 10 do art. 11 da Lei das Eleições). Essa medida, caso adotada, conturbará o processo eleitoral, retardando a mais não poder o final registro de todos os candidatos, que não saberão ao certo contra quem disputam. O dispositivo introduz a surpresa como regra no processo eleitoral ao dizer claramente que há um marco para o registro eleitoral que vale para todos, menos para os que só depois desse prazo venham a preencher os requisitos. Para a Justiça Eleitoral, isso implicará em tornar impossível o alcance do desejo de todos de que os registros estejam julgados com razoável antecedência em relação à data do pleito, restando ferido, assim, o princípio constitucional da eficiência (art. 37 da Constituição Federal).
IV - Multas eleitorais: uma anistia camuflada
Ao equiparar as multas eleitorais aos débitos contraídos perante a Receita Federal o projeto rende ensejo às seguintes conseqüências: a) as multas eleitorais sequer serão inscritas em dívida ativa, quando se referirem a valores inferiores a R$.1.000,00 (ver art. 1º.I da Portaria nº 49/2004 do Ministro da Fazenda); b) quando em valores superiores a R$ 1.000,00, entretanto, mas inferiores a R$ 10.000,00, embora ocorra a inscrição, daí não decorre a conseqüente execução (ver art. 1º. II da supracitada portaria). A grande maioria das multas é fixada em valores que não nunca excedem a quantia de R$ 10.000,00. Exemplos disso são a multa fixada para os que promovem propaganda em bens públicos ou de uso comum do povo, cujo limite é de apenas R$ 8.000,00 (art. 37, § 1º), e a decorrente de propaganda irregular na imprensa escrita, cujo teto é de R$ 10.000,00 (art. 43, parágrafo único da Lei das Eleições. Quanto às multas superiores ao montante mínimo exigido para a execução, os candidatos que praticaram ilícitos reconhecidos pela Justiça Eleitoral disporão de um prazo de 180 meses pagar (15 anos), com juros simbólicos, segundo o que dispõe a Lei nº 11.941/2009. Essa anistia dissimulada atenta diretamente contra o princípio da moralidade, que também limita a atuação do legislador (art. 37 da Constituição Federal).
V - Legitimidade do Ministério Público: omissões inconstitucionais
O novo § 3º do art. 45 da Lei dos Partidos Políticos e a nova redação proposta para o art. 30-A da Lei das Eleições negam legitimidade ao Ministério Público Eleitoral para a propositura de representações por vícios contidos nos programas partidários e por arrecadação e despesas eleitorais feitas ao arrepio da lei. Isso contraria frontalmente o que dispõe os arts. 127 e 129, II, da Constituição Federal, impedindo as promotorias e procuradorias eleitorais de exercer seu papel institucional de velar pela regularidade e legitimidade das nossas instituições eleitorais.
VI - Revisão de prestação de contas rejeitadas: ofensa à coisa julgada
Em afronta ao postulado da coisa julgada, o projeto de lei institui a possibilidade de revisão das decisões dos Tribunais Eleitorais que tenham desaprovado prestação de contas de partidos, mediante simples requerimento nos autos da prestação de contas (novo parágrafo 5º. do art. 37 da Lei 9.096/95). A revisão é permitida para que a sanção aplicada seja reduzida a um prazo de um a doze meses de suspensão de repasse de quotas do fundo partidário. Por ferir o princípio da segurança jurídica, malferindo a coisa julgada (art. 5º, XXVI, da Constituição), o projeto é, também nesse ponto, inconstitucional.
VII - Doações intermediadas pelos partidos
O projeto prevê ainda que “Em ano eleitoral, os partidos políticos poderão aplicar ou distribuir pelas diversas eleições os recursos financeiros recebidos de pessoas físicas e jurídicas, observando-se o disposto no § 1º do art. 23, no art. 24 e no § 1º do art. 81 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, e os critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias.”
Ocorre que as regras que informam a realização de doações para os partidos políticos é bem diversa das que limitam o endereçamento de doações para os candidatos. O mais grave é que a prestação de contas dos partidos políticos só é realizada no ano seguinte ao das eleições, quando os candidatos eleitos já estão empossados e quando não cabe mais nenhuma ação capaz discutir a maneira pela qual os recursos foram obtidos. Nesse passo o projeto atenta contra os princípios da moralidade e da transparência (art. 37 da CF), mas também afronta o princípio da inafastabilidade do Judiciário (art. 5º, XXXV, da CF).
Brasília, 31 de agosto de 2009.
Márlon Jacinto Reis
Presidente da Abramppe - Associação Brasileira dos Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais
Marcus Vinícius Furtado Coelho
Coordenador da Coordenação de Direito Eleitoral
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil