segunda-feira, 2 de abril de 2007

Sobre os dilemas da Justiça Eleitoral I

Vale a pena ler este trecho de voto do Ministro Gilmar Mendes, quando estava no TSE. Mendes foi um dos ministros mais atuantes na defesa de uma postura menos ativista do Tribunal. Creio que o trecho abaixo é bem representativo de seu pensamento (AG Nº 4592, DJ 14/03/2005):

(...)
Como já tive a oportunidade de manifestar, creio que a intervenção do Tribunal Superior Eleitoral no processo eleitoral há de se fazer com o devido cuidado para que não haja alteração da própria vontade popular. É que o ativismo judicial aqui pode colocar em xeque o próprio processo democrático, dando ensejo à conspurcação da decisão majoritária ou a criação de um partido da Justiça Eleitoral que acabará por consagrar, as mais das vezes, o segundo mais votado. Não se está aqui, obviamente, a defender uma concepção acrítica de democracia e da idéia de poder do povo (no jargão popular: “a voz do povo é a voz de Deus”).

A esse propósito, valho-me da análise de Zagrebelsky, verbis:

"Para a democracia crítica, nada é tão insensato como a divinização do povo que se expressa pela máxima vox populi, vox dei, autêntica forma de idolatria política. Esta grosseira teologia política democrática corresponde aos conceitos triunfalistas e acríticos do poder do povo que, como já vimos, não passam de adulações interesseiras. Na democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas supostas qualidades sobre-humanas, como a onipotência e a infalibilidade. Depende, ao contrário, de fator exatamente oposto, a saber, do fato de se assumir que todos os homens e o povo, em seu conjunto, são necessariamente limitados e falíveis.

Este ponto de vista parece conter uma contradição que é necessário aclarar. Como é possível confiar na decisão de alguém, como atribuir-lhe autoridade quando não se lhe reconhecem méritos e virtudes, e sim vícios e defeitos? A resposta está precisamente no caráter geral dos vícios e defeitos. A democracia, em geral, e particularmente a democracia crítica, baseia-se em um fator essencial: em que os méritos e defeitos de um são também de todos. Se no valor político essa igualdade é negada, já não teríamos democracia, quer dizer, um governo de todos para todos; teríamos, ao contrário, alguma forma de autocracia, ou seja, o governo de uma parte (os melhores) sobre a outra (os piores).

Portanto, se todos são iguais nos vícios e nas virtudes políticas, ou, o que é a mesma coisa, se não existe nenhum critério geralmente aceito, através do qual possam ser estabelecidas hierarquias de mérito e demérito, não teremos outra possibilidade senão atribuir a autoridade a todos, em seu conjunto. Portanto, para a democracia crítica, a autoridade do povo não depende de suas virtudes, ao contrário, desprende-se - é necessário estar de acordo com isso - de uma insuperável falta de algo melhor." (Zagrebelsky, Gustavo. La crucifixión y la democracia, trad. espanhola, Ariel, 1996, pg. 105 - título original: Il “crucifige!” e la democracia, Giulio Einaudi, Torino, 1995)

De fato, se não é correta essa divinização do poder popular, não menos certo é que a eventual relativização do princípio da maioria, após a realização de um pleito eleitoral complexo, não pode ser tomada como algo ordinário. Nesse caso, seguindo a linha de raciocínio de Zagrebelsky, estaríamos consagrando um tipo nefasto de autocracia, ou seja, o governo de uma parte (no caso a minoria vencida) sobre a outra (os vencedores do pleito eleitoral).

Sem dúvida, nas palavras de Kelsen, “o princípio da maioria absoluta (e não qualificada) representa a aproximação relativamente maior da idéia de liberdade”.

Ainda em Kelsen, encontra-se o seguinte pensamento acerca do princípio majoritário, verbis:

"Há apenas uma idéia que leva, por um caminho racional, ao princípio majoritário: a idéia de que, se nem todos os indivíduos são livres, pelo menos o seu maior número o é, o que vale dizer que há necessidade de uma ordem social que contrarie o menor número deles. Certamente esse raciocínio pressupõe a igualdade como postulado fundamental da democracia: de fato está claro que se procura assegurar a liberdade não deste ou daquele indivíduo porque esta vale mais que aquele, mas do maior número possível de indivíduos. Portanto, a concordância entre vontades individuais e vontade do Estado será tanto mais fácil de se obter quanto menor for o número de indivíduos cujo acordo é necessário para decidir uma modificação na vontade do Estado, no momento em que se manifestasse, estivesse mais em desacordo do que em acordo com as vontades individuais; se isso fosse exigido ao máximo, poderia ocorrer que uma minoria pudesse impedir uma mudança na vontade do Estado, contrariando a maioria." (A Democracia, São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 32)

Com tudo isso, gostaria apenas de enfatizar a inadmissibilidade, em um autêntico regime democrático, de uma rotineira e excessiva relativização do princípio majoritário. Não se cuida aqui de opção de política judiciária a ser ou não desenvolvida por esta Corte, mas de inevitável aplicação do princípio da proporcionalidade, que, entre nós, está expresso na cláusula do devido processo legal substancial (art. 5º, LIV, da Constituição Federal). Há, especialmente, uma violação à proporcionalidade em sentido estrito, tendo em vista a ponderação entre os valores constitucionais que, no caso, apresentam-se contrapostos.

No caso concreto, pode-se verificar a ausência da proporcionalidade, ou ainda, um autêntico excesso na aplicação da sanção imposta em razão da conduta descrita no art. 73, VI, “b”. Não parece plausível que o descerramento de uma placa, cujo único propósito é o registro do ato histórico, tenha produzido um desequilíbrio no processo eleitoral.


3. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial (RITSE, art. 36, § 7º).

Brasília, 8 de março de 2005.

Ministro Gilmar Mendes

2 comentários:

Cláudio Ladeira de Oliveira disse...

Mauro,
É realmente muito interessante o voto, ideal para "estudo de caso". Vale a pena estudá-lo melhor, inclusive para confrontar os fundamentos utilizados com a questão específica que foi objeto da decisão. Em todo caso, como não dá pra segurar a vontade de dar palpite... vão duas sugestões para discussão: 1) ambos os argumentos (Zagrebelsky e Kelsen) são essencialmente utilitaristas: a democracia justifica-se pela "ausência de algo melhor" e pela necessidade de "satisfazer o maior número possível". Bem, são argumentos que reivindicam boa dose de realismo, evitam ilusões etc. Mas até que ponto funcionam mesmo? Não seria possível suportar a igualdade universal do voto nas virtudes intrínsecas aos processos políticos democráticos? Acho que não há motivo para abandonar esta idéia, que não se confunde com "idealização" do povo como entidade abstrata etc. Aliás, acho que a principal, talvez a única (tenho dúvidas quanto a isso), superioridade dos processos democráticos decorre de uma suposição racional a favor da igualdade de voto em processos democráticos (portanto, um argumento anti-utilitário).
2) Veja só uma consequência do "realismo" implícito na fundamentação utilitarista: basta suportar que o "processo democrático completo" (Gilmar Mendes) não foi observado para então desconsiderarmos o resultado em favor do direito jurisprudencial. Mas, o processo democrático é completo quando boa parte dos eleitores não possuem o suficiente para uma vida digna? Veja, apenas quero chamar a atenção para o fato de o argumento é bem menos funcional do que parece à primeira vista, especialmente em virtude do apelo ao utilitarismo. Na melhor das hipóteses ele sofre dos mesmos males que atingem a "idealização do povo", por exemplo, temos aqui o risco de uma "idelização" da capacidade que os tribunais possuem para avaliar se o processo democrático foi completo ou não.
3) O comentário está super longo, desculpe, mas só mais essa: Kelsen é um autor genial, inclusive nos textos sobre democracia. Mas na passagem citada, onde afirma que seu argumento é o "único caminho racional" para a defesa do princípio majoritário, sinceramente... acho não é o ÚNICO (foi forte isso né?) dado que existem incontáveis argumentos já elaborados para a defesa de tal princípio (veja Aristóteles, Condorcet e Waldron). Na verdade, acho que nem é tão racional assim: ele mescla o instituto do voto igualitário universal com uma "satisfação do maior número possível".
Mas claro, tudo isso é assunto para um infinita discussão
Grande abraço
PS. ô, foi mal ontem. Aquilo que o Americano fez com o Fluminense, pelo amor de Deus, realmente não se faz.

Mauro Noleto disse...

Caro Cáudio, é um prazer recebê-lo n'APonte. Sua aula crítica sobre o voto e os fundamentos utilitaristas do Ministro Gilmar enriquecem este diário e me ajudam a alcançar os objetivos que tracei para a empreitada: auxiliar no trabalho pedagógico, apoiar o ensino da matéria Direito Eleitoral.

Não quero acrescentar nada ao seu lúcido e oportuno comentário, apenas lembrar que, desgraçadamente, não é costume dos juízes recorrerem a conceitos estranhos ao seu mundo jurídico e, quando o fazem (a questão da "democracia"), parecem ignorar que o assunto não se exaure nos argumentos de autoridade.

Bem, sobre meu time do coração, não foi o Americano que fez aquilo com o Fluminense, foi ele próprio. Para a tristeza dos tricolores, ainda não temos um time, situação parecida com a do Flamengo até a chegada do improvável Ney Franco na Gávea.

Abraço forte.