Mensalão: editorial
Colóquio na corte
Toda instituição republicana, até a mais augusta, pertence aos cidadãos, que só ganham com a transparência
PODERIA TER SIDO muito pior -e mesmo assim não haveria nada de incorreto. Os meandros do mensalão começavam a ser postos em debate no Supremo Tribunal Federal quando uma conversa eletrônica entre dois membros daquela corte de Justiça foi flagrada por lentes fotográficas.A ministra Cármen Lúcia trocava impressões com seu colega Ricardo Lewandowski, não só a respeito do teor das acusações em pauta, mas também do comportamento presumível de outro ministro, a quem, de modo mais jocoso do que sibilino, denominou de "Cupido". Não foram necessários longos esforços de hermenêutica para deduzir-se que se tratava de seu vizinho no plenário, o ministro Eros Grau.O incidente não teria, à primeira vista, dimensões para suscitar mais do que um pálido sorriso, como aqueles que pairam, por vezes, nos rostos da estatuária clássica. Humanos, demasiado humanos, também os juízes se articulam nos bastidores, trocam informações reservadas e lançam em segredo, sobre seus colegas, as farpas da suspeita.Mais que isso estava em jogo, todavia, e houve quem reagisse à divulgação do colóquio pelo jornal carioca "O Globo" de forma exacerbada. Ex-presidente do STF, o atual ministro da Defesa Nelson Jobim qualificou de "intromissão anticonstitucional" aquele flagrante fotográfico.Vão-se tornando comuns as situações em que, por força do progresso tecnológico, reduz-se de forma drástica o diâmetro da privacidade individual. Certamente renova-se, com isto, a discussão sobre quais as responsabilidades da imprensa quando se trata de divulgar aquilo que, tempos atrás, não havia meios de captar.É o interesse público que deve presidir o exame de cada caso específico. A conversa entre os dois ministros do STF incidia sobre assunto indiscutivelmente relevante. Tratava-se de um hipotético acordo entre Eros Grau e o governo Lula, em torno da nomeação de um novo membro daquela corte. Na interpretação do ministro Lewandowski, a tendência de Eros Grau para não acolher a denúncia contra os envolvidos no mensalão viria a corroborar essa hipótese.Seria ingênuo imaginar que o STF esteja imune ao jogo das considerações políticas; seria também abusivo considerar que, num caso de grande complexidade jurídica como o do mensalão, não possa haver decisões independentes e fundamentadas em favor de qualquer lado no debate.Nem a legitimidade das decisões do Supremo Tribunal Federal nem a dimensão política de todo julgamento desse tribunal tornam-se suscetíveis de reavaliação automática a partir desse episódio. Mas este ampliou, entretanto, os recursos à disposição da opinião pública -já beneficiada com a própria transmissão das sessões pela TV- para acompanhar as atitudes de seus membros. Toda instituição republicana, por mais augusta que seja, pertence ao conjunto dos cidadãos; e estes só têm a ganhar com a transparência.
Folha de São Paulo, 24 de agosto de 2007.
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