sábado, 3 de maio de 2008

A natureza das coisas

Existem coisas muito curiosas na "ciência" jurídica. Uma delas chama-se natureza jurídica. A dogmática se apropria dessa metafísica para classificar os eventos do Direito, separar os conceitos (institutos) e as regras que compõem o conhecimento jurídico em seus campos adequados: o público e o privado; o civil e o penal; o material e o processual; o constitucional e o infraconstitucional; o administrativo e o jurisdicional... Acontece que nunca foi tão difícil definir a natureza jurídica das coisas.

Se cada coisa, cada evento social, ficar no seu devido lugar os sistemas jurídicos prometem funcionar corretamente. O Direito administrativo, o penal, o civil, o processual, cada um tem seus "códigos"próprios de funcionamento.

Esse tipo de função reguladora, em termos conceituais, é exercida pela ciência do Direito, também conhecida como Dogmática. Embora não possa reconhecer isso abertamente, o papel da ciência no Direito é sim regulatório. É a prática dos juristas o alvo das categorias jurídicas construídas teoricamente. O objetivo é conferir a essa prática uma racionalidade funcional, ou formal. Esse é o plano do projeto kelseneano, grande filósofo do positivismo jurídico. Mas, parece que a tarefa se tornou muito mais difícil na vida contemporânea.

Kelsen foi o grande arquiteto da ciência jurídica moderna. Seu livro "Teoria Pura do Direito" foi o manual de instruções de mais de uma geração de professores e, principalmente, de aplicadores do Direito. Ele pretendia criar o estatuto científico para o Direito pela depuração de tudo que lhe fosse estranho (metajurídico), os valores, as ideologias, as crenças e até a própria natureza. O conhecimento jurídico deveria apenas descrever o modo de criação e funcionamento das normas jurídicas em vigor numa determinada sociedade. Tal como o físico que contempla e descreve o mundo da Natureza, o jurista científico deveria explicar o mundo do Direito, sem pretender avaliar, muito menos transformar esse mundo. Essa não seria a tarefa de um cientista, mas de um político, ou de um filósofo.

O tempo de Kelsen (século XX) era o da objetividade, da centralização do poder, da polarização ideológica, da segurança jurídica. Seu modelo teórico, nesse contexto, é honestamente coerente. A justiça aí é sinônimo de estabilidade, previsibilidade, numa palavra, controle.

Nessa virada de milênio, porém, o mundo parece ter ganho tanta complexidade que torna muito mais difícil o projeto dogmático de controle conceitual sobre a prática jurídica. A terceira e a quarta gerações de direitos, que inundaram todas as Constituições da atualidade, trouxeram novos direitos difusos, coletivos, comunitários, trans-individuais para dentro do sistema jurídico, até então dominado pelo liberalismo contratual e pelo direito de propriedade. Novos direitos, novos conflitos e novas práticas, isto é, novos modos de agir na hora de aplicar e de interpretar o Direito.

Como classificar o direito do consumidor, o ambiental, o da criança e do adolescente, o do idoso, o das cidades, o eleitoral... ? Qual a sua natureza jurídica?

Responder essas perguntas com as categorias dogmáticas causa alguns desconfortos. Vejamos, por exemplo, o Estatuto de defesa da Criança e do Adolescente (ECA). Essa lei não se encaixa em nenhum dos campos isoladamente. Possui regras civis de filiação, de paternidade, de adoção, mas também normas penais e processuais, além de normas de organização destinadas à Administração Pública, como as regras que definem a internação em estabelecimento de reeducação e recuperação. Esse é o perfil da nova legislação democrática brasileira, uma legislação estatutária, garantista, composta de elementos dos diversos sistemas jurídicos, ela própria, o estatuto, um micro-sistema normativo. Esse modele se repete nos estatutos do consumidor, dos idosos, das cidades, do torcedor, e também no estatuto do eleitor, a lei das eleições (9.504/97). Ao perfil desses estatutos acrescente-se o caráter vago, impreciso, aberto de muitos de seus enunciados (boa-fé, urgência, relevância, abusividade, decoro, ordem pública etc.)

Essa pluralidade de sistemas e de micro-sistemas normativos traz legitimidade social ao Direito, mas gera também uma competição interna muito mais difícil de ser controlada teoricamente. A teoria jurídica que não observe essas transformações será simplesmente abandonada, por obsoleta. Apegar-se à objetividade, como faz a mateodologia positivista é não perceber que a subjetividade faz parte do modo de conhecer o próprio Direito contemporâneo. Ele pede para ser interpretado, suas normas abertas semanticamente precisam de concretização quando aplicadas. E para piorar, os estatutos também se diferem dos códigos (civil, penal, processual, eleitoral) porque assumem um dos lados do conflito social que pretende organizar. O lado do consumidor contra o poder econômico; o das crianças contra a violência dos adultos; o dos bens e recursos culturais, históricos e ambientais contra o patrimonialismo e a degradação; e também, para finalizar, o lado da liberdade de escolha do eleitor e do equilíbrio das disputas frente os abusos de poder político e econômico.

A questão, portanto, não é eliminar a subjetividade para atingir a objetividade do conhecimento científico no Direito. Isso não é possível. Nunca foi, na verdade. Antes, a legalidade liberal disfarçava as escolhas. Hoje, para aplicar o Direito é preciso escolhera o caminho para a solução do conflito nos sistemas disponíveis, às vezes, antagônicos. O juiz precisa decidir de verdade, ou seja, optar por uma ou outras soluções para seu caso concreto. São cada vez mais raros os casos em que ele apenas deduz a solução daquela norma, a única, aplicável. De vez em quando, perplexos, alguns apelam para a natureza das coisas.

Um comentário:

Cláudio Ladeira de Oliveira disse...

Parabéns pelo belo post Mauro. Vem artigo novo por aí?
Só uma sugestão de debate: o positivismo contemporâneo (especialmente autores como Waldron, MacCormick e Champbell) rejeita o modelo de objetividade Kelseniano e afirma o caráter construtivo da prática jurídica, essencialmente interpretativa. No entanto, à afirmação de que os conceitos jurídicos são mais construtivos que descritivos, eles acrescem duas espécies de observações: (1) do fato de que a interpretação juridídica não é "objetiva" no sentido kelseniano NÃO é possível extrair uma autorização política ou afirmar a capacidade moral e intelectual dos juízes para "criar" direito. Eles podem falhar gravemente, guiar-se por interesses de classe, pelo "clamor" popular midiático etc; (2) o fato de que a interpretação juridídica não é "objetiva" no sentido kelseniano NÃO invalida as exigências morais de que os juízes sejam mais comedidos em suas interpretações. Campbell, p. ex., encontra na idéia de respeito aos direitos humanos uma exigência de que os juízes evitem substituir as decisões políticas legislativas pelas suas próprias convicções morais.
Enfim, é um debate extremamente atual politicamente e renovado academicamente.
Abraço