sexta-feira, 4 de maio de 2007

Uma crise antiga


“O que na verdade assoberba os tribunais, prejudicando o acurado exame dos temas difíceis, são os casos que se multiplicam, seriadamente, como se houvesse uma fábrica montada para fazer dos juízes estivadores.”

Victor Nunes Leal, 1964.[1]

O recurso extraordinário, ou simplesmente RE, é a via pela qual chega ao Supremo a expressiva maioria dos processos de sua competência. Mesmo quando a classe processual é a do agravo de instrumento, o que se pretende é dar trânsito ao recurso extraordinário não admitido na instância de origem. Nas duas últimas décadas houve uma verdadeira explosão dessa demanda recursal. Os números da movimentação processual do Tribunal estão hoje compilados no Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário (BNDPJ). Ali se verifica que no ano 2000, por exemplo, os recursos extraordinários e os agravos de instrumento corresponderam a 97.4% de todos os processos distribuídos no Tribunal, o que em números absolutos perfaz um total de 90.839 recursos distribuídos.

Na década de sessenta, o Ministro Victor Nunes Leal, insatisfeito com o congestionamento do STF, foi pioneiro na adoção de novos procedimentos e técnicas de julgamento e de visualização da jurisprudência (a Súmula) como resposta ao que já se conhecia como a crise do Supremo.[2] [3] Corria o fatídico ano de 1964 quando o Ministro Victor Nunes registrou assim sua irresignação diante da crise:

“Julgar processos sempre fez o Supremo Tribunal que, ultimamente, decide cerca de 7.000 por ano. Podemos ter uma idéia do aumento do serviço quando observamos que, em 1950, foram julgados 3.511. Quando um tribunal se vê a braços com esse fardo asfixiante, há de meditar, corajosamente, sobre seu próprio destino. Se não o fizer, deixará que formulem a receita os que menos conhecem a instituição, ou aqueles que desejariam diminuí-la, para mudar o nosso regime de liberdade garantida em sistema de liberdade tolerada.”[4]

Comparando-se os números acima que assustavam o Ministro com os de hoje compreende-se bem porque o Ministro Sepúlveda Pertence chegou a afirmar, com uma ponta de ironia, no voto que proferiu como relator no Agravo Regimental em Agravo de Instrumento 466.032, que a crise do Supremo, que tantas vezes dissera ser a crise do recurso extraordinário, estava sendo rebaixada à crise do agravo de instrumento:

“Falar de agravo de instrumento é falar do campeão – por classe – dos recursos para o STF: desde 1995 – ano em que o número de agravos superou o de recursos extraordinários – é ele o primeiro em números de distribuição e julgamentos. Em 2002, foram distribuídos 50.218 agravos (contra 34.719 recursos extraordinários) e julgados 45.769 (contra 34.396 recursos extraordinários). Foram 5.021 agravos, em 2002, para cada um dos 10 Ministros que atuam como relatores. Em proporção(dados somente de 2002), os agravos corresponderam a 57.5% dos processos distribuídos ao Tribunal. A crise do Supremo que tantas vezes disse com razão ser a crise do recurso extraordinário, acabou pobremente reduzida em graus paroxísticos, na crise do agravo de instrumento.”[5]

Essa é uma crise de números, de quantidade e de estrangulamento da capacidade judicante do STF – fenômeno que se repete nos demais tribunais superiores, especialmente no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal Superior do Trabalho.

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[1] LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público e Outros Problemas. V. II. Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 40-41.
[2] Edson Rocha Bomfim, em sua obra sobre o perfil histórico do STF, registra que a percepção da crise do Supremo vem de muito longe. Em 1913, o Ministro Guimarães Natal já reclamava da “eternização” das causas no STF. Em 1943, o Ministro Filadelfo Azevedo, citando dados estatísticos de 1926 a 1942, pedia uma nova reforma constitucional para enfrentar a crise: “É preciso, pois, voltar ao assunto, enquanto a crise não se agrava a ponto de paralisar praticamente o Supremo Tribunal, deixando os litigantes, inclusive a própria União, a aguardar os julgamentos por longos anos.” BOMFIM, Edson Rocha. Supremo Tribunal Federal – perfil histórico. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p.50.
[3] AZEVEDO, Filadelfo. A Crise do Supremo Tribunal Federal. Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Ano I. N. 1. 1943.
[4] LEAL, Victor Nunes. Op. Cit., p. 37.
[5] SEPÚLVEDA PERTENCE, José Paulo. Voto no AI 466.032-AgR, Pertence, Primeira Turma, DJ 18.3.2005.

4 comentários:

Gustavo Pedrollo disse...

Mauro,

Ótimo post, a começar pela lembrança do Victor Nunes Leal. Admiro demais os trabalhos dele, um dos juristas mais comprometidos com a democracia na história do nosso Judiciário.
Mas, com relação ao tema, questiono o seguinte. Evidentemente, o número de processos no STF é absurdo, inadmissível para uma Corte Constitucional. Pergunto-me se a Súmula Vinculante realmente ajudaria a desafogar o STF. Não haveria, pelo menos de início, um número grande de reclamações (seja ou não considerado isso um recurso), direto para o STF, buscando o cumprimento das Súmulas?
E a liberdade para o STF escolher quais recursos extraordinários julgar não é excessivamente discricionária?
Não estaria o STF em meio a uma crise verdadeiramente existencial, de redefinição de seu papel, dada a influência anglo-saxã na sua criação misturar-se com a origem continental do nosso Direito como um todo?

Mauro Noleto disse...

Caro Gustavo, o que virá depois da adoção dos novos instrumentos do controle da constitucionalidade merece a nossa atenção crítica, mas sem perder de vista que não melhora a nossa democracia ter uma Corte Suprema a julgar 100.000 processos por ano. Primeiro, porque não julga 100.000 casos diferentes, mas algumas dezenas de casos que se multiplicam, ou melhor, que são replicados.

Quanto às reclamações, elas já respondem hoje por parcela significativa desses processos - considerando o farto julgamento de ADINs que o STF promove a cada ano -, e devem aumentar, se o STF editar súmulas vinculante, principalmente para os casos julgados em recurso extraordinário. Esse ônus será suportado e faz parte dessa mudança de identidade a que você se refere. E não é apenas no STF, mas no judiciário como um todo, que a cultura positivista e privatista cede espaço para novos modos de se pensar e de se fazer a justiça.

Mais poder aos juízes, sem dúvida! Poder discricionário, sim, mas discricionaridade condizente com a necessidade de amadurecimento institucional de nossa democracia. Acho que não podemos nos esforçar para conservar o Judiciário no lugar obscuro que lhe reservou Montesquieu. O Judiciário está no jogo político e não acho que deva sair. Tudo bem, não está jungido pela lógica da representatividade, sua lógica é a da funcionalidade, mas ao sair a campo, se expõe à crítica, torna-se mais transparente, abre-se para a sociedade participar de seu cotidiano, como jamais ocorreu em nossa história. E mais, torna-se muito mais eficiente na tarefa histórica de fiscalizar e equilibrar os poderes da República.

A crise de identidade é natural, assim como as espinhas no rosto, a tirania dos hormônios, a coragem para quebrar regras...

Gustavo Pedrollo disse...

Mauro,

Concordo, evidentemente, que o atrolho de processos no STF é um absurdo. Esses dias chegou ao STF, deves ter visto, uma ação penal em que o cidadão era acusado de ter furtado um garrafão de vinho (embora isso possa ser importante, caso se trate de definir a aplicação do princípio da insignificância no Dto Penal).
A crise de identidade a que me refiro não diz respeito a isso, mas a que tipo de Corte Constitucional teremos. De momento, as reformas parciais parecem dar ao STF mais jeito ainda de Suprema Corte americana, mas isso não é claro. Essa convivência entre diferentes modelos de controle de constitucionalidade ainda é um desafio, tanto mais que o Dto. Processual Civil brasileiro é ainda profundamente marcado pelo origem romano-germânica e portuguesa, e bastante formalista.
A minha impressão é que, no andar da carruagem, as melancias vão se acomodando, e que nada disso é pensado e planejado. Mas posso estar errado, evidentemente.
Por fim, não vejo relação entre um judiciário mais ativista e a possibilidade de o STF recusar-se a julgar recursos extraordinários que não julgar relevantes. O ativismo judicial pode não existir, mesmo em tais circunstâncias.
Já acreditei mais no ativismo judicial, hoje o vejo com mais ressalvas, e prefiro apostar minhas fichas no processo político democrático de tomada de decisões. Nesse processo, acho que o papel do Judiciário deve ser mais discreto, digamos assim. Isso não significa, em absoluto, que ele tenha que se igualar ao papel que Montesquieau a ele atribuía. Aliás, o arranjo dos poderes, hoje, tem um tal grau de complexidade (com TCU, MP, agências, controladorias), que isso seria impossível.
Mas esse é um longo debate...

Abraço,

Mauro Noleto disse...

Compartilho de suas preocupações quanto às confusões que esse novo perfil de Judiciário está causando, e causará. Mas, em nenhum momento defendi o ativismo judicial, apenas acho que ele já é uma realidade. E isso é que justifica blogs como o Civitates e APonte. É preciso discutir o assunto, estudar o assunto e, cumprindo uma das mais nobres funções científicas, oferecer parâmetros racionais de controle, para que o ativismo não seja simples voluntarismo arbitrário.

Abraço forte.