Por que este debate sobre a Lei de Biossegurança está carregado de disputas ideológicas, religiosas e filosóficas, além dos aspectos apenas jurídicos?
No meu voto, chamei a atenção para a relevância ética, religiosa e filosófica, além de jurídica, dessa causa. É uma matéria sensível nos três campos. As diversas confissões religiosas têm o direito de participar desse debate, porque a sociedade é plural. O que não se pode é impor um ponto de vista a ponto de obstar legítimas políticas públicas e estatais. O debate é a sadia convivência dos contrários. Essa decisão do Supremo já nasce com legitimidade pelo envolvimento da sociedade neste debate. Pluralismo é o nome que a democracia toma quando vista do ângulo da convivência dos contrários. No mundo inteiro, o próprio catolicismo se divide quanto a esses tabus. Onde se encontra um bloco monolítico, fechado, contra o aproveitamento terapêutico-científico das células-tronco embrionárias, existe um fenômeno de cúpula, de dirigentes da igreja que fecharam questão. Não os católicos em geral. Isso também quanto ao aborto e à eutanásia.
Como o senhor, que tem formação católica, se livrou da polêmica religiosa em torno da Lei de Biossegurança?
Transito por estes expoentes da espiritualidade sem fechar com nenhum em particular. Rendo homenagens a São Francisco de Assis, um homem depurado, por exemplo, mas me deparo com Buda e encontro um líder espiritual portentoso. E não vou minimizar o papel de Buda perante Cristo. Os dois foram gigantescos. Além disso, uma coisa é Cristo. Outra é uma organização em torno dele. Uma coisa é Buda. Outra são as organizações em torno dele. Prefiro ver Cristo e Buda diretamente, sem as igrejas que se estruturaram historicamente e que cultuam suas mensagens.
O STF tem pela frente temas tão polêmicos quanto este, a exemplo do aborto para casos de anencefalia e união civil homossexual, eutanásia e até o próprio aborto. A polêmica vai se repetir?
Certos temas tidos pela sociedade como tabus são evitados porque não podem ser vistos de frente como o sol a pino. Mas uma sociedade democrática evolui no sentido de trazer tudo a lume. Não pode haver tabus temáticos em uma democracia consolidada. Este julgamento faz parte de um processo de evolução democrática que estamos maravilhosamente vivendo. Eu recebi para relatar o processo que trata da lei que regula as relações homoafetivas. Um dia, o Supremo iria se debruçar sobre esse tema. Não se pode mais escamotear nada. Essa aurora institucional que dizem estar vivendo o Supremo é conseqüência do processo democrático. Quando se tem liberdade de expressão, os tabus acabam. Isto é bom, é o antiobscurantismo. O direito brasileiro está do lado dos que sofrem e não do sofrimento.
O senhor acha que no Brasil há excesso de leis conservadoras que reforçam os tabus?
Este fenômeno existe, mas não o endosso da Constituição. Pelo contrário. Isto ocorreu porque a Assembléia Nacional Constituinte produziu um documento que é melhor do que a própria assembléia que o elaborou. A obra é melhor do que seu autor. Há no Brasil um descompasso normativo entre o direito comum e o direito constitucional. A Constituição é mais avançada do que o direito ordinário. O que nos cabe como ministros do Supremo é dar um banho de Constituição no direito ordinário para que ele se atualize e corresponda ao sentido de liberdade das nossas vidas.
Por que há este descompasso entre a Constituição, o conjunto de leis ordinárias e a vida real no Brasil?
Isto ocorre porque a Constituição está muito mais próxima da vida real do que o direito ordinário. A crítica de que a Carta Magna seja muito extensa e com artigos desnecessários é descabida. O texto deve ser celebrado como um documento enxuto e contemporâneo, no sentido da atualidade e valores que consagra. Tanto que as cláusulas pétreas, tão injustamente criticadas, significam uma proibição de retrocesso. Nós avançamos tanto na Assembléia Constituinte que foi preciso garantir esse avanço e impedir o retrocesso. Eu estou convicto de que a Constituição tem que ser vista com um novo olhar, de reverência e gratidão. O que está faltando é um novo olhar sobre o direito brasileiro, na perspectiva dos maravilhosos valores que as Constituição consagrou. Vou dizer dois: plenitude democrática e liberdade de expressão.
O STF está afinado com o pensamento da sociedade?
Deve estar, sim. O doutor Dráuzio Varella, que é um incontestável cientista respeitado, disse que a medicina celular vai cumprir no século 21 a mesma revolução que o antibiótico tempos atrás. Isto é uma visão de homem contemporâneo. O Victor Hugo (escritor francês do século 19) disse que “nada é tão irresistível quanto uma idéia cujo tempo chegou”. E chegou o tempo da medicina celular. Goethe morreu pedindo luz, mais luz. Claro que ele estava falando de luz não pensando no sol tropicalista, caribenho ou nordestino, e sim na luz da consciência. E nós vamos querer mais trevas, mais trevas e ainda mais trevas agora? Chega de trevas.
O senhor procurou exaltar o papel da mulher neste debate?
Noto que subjacente às teses religiosas e científicas de que o protagonista central do processo de hominização é o útero, está a exaltação da mulher. Distingo, no meu voto, a gravidez da maternidade. E digo que na barriga de aluguel, com certeza, há uma gravidez, mas é de se supor que não haja maternidade. Na maternidade consentida, querida, há um aporte de bem querer que cumpre um papel criativo, que vai plasmar a personalidade de uma futura pessoa. É de se supor, então, que na sua opinião é legitimo e legal uma mulher grávida que não quer ser mãe interromper a gestação? Eu não quis, por enquanto, antecipar o debate sobre o aborto. Porque não estava em causa e, depois, quando se abre o leque de controvérsia, perde-se o foco e o poder de convencimento enfraquece. O foco da questão é: os embriões produzidos in vitro, quando destinados à pesquisa científica e à terapia humana, sofrem uma violência tal que corresponde a um aborto? Eu respondi que não. Tenho dito que, para mim, a vida humana, já adornada do fenômeno da personalidade, é um fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral. A vida civil, no conceito de pessoa. Para convencer, tive que fazer as distinção entre embrião, feto e pessoa. Se isso sugere uma antecipação do debate sobre o aborto, não foi a minha intenção.
Há críticos que apontam vários defeitos na Lei de Biossegurança.
Isto é fugir do foco do debate. O que devemos fazer é saber se o conjunto normativo da lei, que é o artigo 5º, é compatível ou não com a Constituição. Procurar outros defeitos ou virtudes na lei não está em causa. Na parte que estamos analisando, a lei é adequada, ponderada e necessária. Não analisei a lei como um todo porque o artigo sozinho já é um mundo. É quase uma nanojurisprudência e exige uma nanodecisão.