O Direito Achado na Rua
Antes de lecionar a matéria Direito Eleitoral, fui professor durante quase doze anos da matéria Introdução ao Direito. Corria o ano 2000, quando um grupo de alunos da Faculdade IESB aqui de Brasília pediu uma entrevista comigo para um trabalho da disciplina Sociologia Jurídica, ministrada pela professora Dulce Suassuna. O tema do trabalho era o "projeto" da UnB intitulado O Direito Achado na Rua. Selecionei alguns trechos da entrevista para esta postagem. É bom rever as próprias idéias. Melhor ainda é compartilhá-las.
Mauro Noleto- Em primeiro lugar é preciso dizer o seguinte: há uma grande confusão conceitual. Quando se diz que Direito Achado na Rua é Direito Alternativo, devo fazer uma primeira observação distintiva. No Brasil, a expressão Direito Alternativo refere-se, no terreno institucional, ao movimento de juizes do Rio Grande do Sul que, cansados da ação conservadora do Judiciário, e levando em conta o impacto dos grandes conflitos de classe, de gênero, de posições na sociedade, decidiram eles próprios posicionarem-se, decidiram admitir sua posição política favorável àqueles considerados oprimidos, espoliados ou excluídos. E de dar essa diretriz política nas suas decisões. Entretanto, não se pode considerar esse movimento como exclusivamente doutrinário, ou científico, mas essencialmente POLÍTICO, de inversão dos aspectos dominadores presentes na legislação oficial, pela utilização de uma interpretação que explora as contradições do ordenamento, principalmente pelo recurso aos princípios vagos do direito constitucional, ampliando essas contradições e possibilidade, mas sem fugir desse plano normativo, salvo nos casos, bastante raros, dos julgamentos contra legem. Nesse caso, é preciso considerar que nem todos os conflitos terão o caráter de luta de classes decorrentes da estrutura capitalista (família, consumidores ricos e vulneráveis, questões ligadas às garantias liberais do processo, principalmente em matéria penal, etc.).
O juizes gaúchos, entretanto, não inventaram nada. Na verdade, no caso desse movimento, é mais correto falar em “Uso Alternativo do Direito”. Segundo o Dicionário Arnaud essa expressão diz respeito à “corrente doutrinária e da práxis jurídico-política, geralmente de inspiração marxista, que sustenta a natureza política do direito, seu caráter de classe, e que admite a possibilidade de sua interpretação e de sua aplicação contra os interesses da classe dominante e a serviço das classes oprimidas”. Os antecedentes históricos do conceito remontam ao movimento de juristas italianos da década de setenta, que consagraram essa expressão, partindo de convicções ideológicas, destacando-se entre estes Pietro Barcelona e o movimento de juizes denominado Magistratura democrática.
Com efeito, já havia uma discussão teórica desde o século XIX, que teve maior repercussão no começo do século XX, segundo a qual o Direito era uma livre criação do Juiz, conforme suas convicções políticas, morais, etc. Essas correntes rompem a tradição iluminista da Escola da Exegese, cuja crença na objetividade e completude da lei codificada reservava para o juiz um papel quase mecânico: pronunciar as palavras da lei.
Mais recentemente, no contexto das ditaduras militares, dos regimes políticos injustos, ilegítimos, foi se desenvolvendo um movimento de reação a essa legalidade institucional considerada ilegítima. O problema é que todos os movimentos, teóricos ou não, nesse sentido acabam sendo levados para debaixo do rótulo “Direito Alternativo”, inclusive o “Direito Achado na Rua”, que não é um movimento institucional, é um movimento teórico, de professores e pesquisadores, que foi liderado na década de 80 pelo Professor Roberto Lyra Filho, na Universidade de Brasília, que criou um movimento chamado “A Nova Escola Jurídica Brasileira”. Não tinha ainda esse nome de Direito Achado na Rua. Era a Nova Escola Jurídica Brasileira que congregava professores de Direito e de outras áreas, e que divulgava suas reflexões numa revista chamada “Direito e Avesso”, na virada dos anos 70 para a década de 80. Com a morte do Professor Lyra Filho, em 1986, o Professor José Geraldo de Sousa Jr., da UnB, organizou um projeto, inspirado no desejo do próprio Lyra Filho de criar um curso de Introdução ao Direito, que ele chamaria de “O Direito Achado na Rua”. Segundo o professor Lyra Filho é preciso buscar a raiz do fenômeno jurídico não apenas na lei, mas no cenário histórico em que ele se manifesta, onde ele acontece, na rua, que é o espaço público onde os conflitos se dão e onde as formas de síntese, superadoras dos conflitos, numa perspectiva dialética, revelam o constante movimento de criação e recriação dos padrões de emancipação e de convívio social organizado com base na liberdade. Ou seja, a rua, o espaço público, é o lugar de surgimento do direito. Essa que é a origem do Direito Achado na Rua.
E eu não acho que esse rótulo de Direito Alternativo para o Direito Achado na Rua seja correto. Eu, por exemplo, não me considero alternativista. Porque na minha visão, que é nessa linha do Direito Achado na Rua, o problema não é dizer que há um Direito dos oprimidos e um Direito dos opressores. O problema é dizer que nessa tensão é preciso tentar achar “o Direito”, e não um direito e outro, alternativo àquele. A pergunta é sempre aquela: “o que é Direito”, independente de ser legal ou de ser social.
Resumindo, eu diria que a expressão direito alternativo transformou-se num rótulo, ou estereótipo e, como todo estereótipo, ela evidencia determinados aspectos da realidade a que se refere, mas oculta outros, deixando-os na sombra. Ela evidencia a insatisfação com o pensamento e a prática excessivamente formalistas e pretensamente neutras no direito, denunciando seus aspectos ideológicos. No entanto, induz a uma certa polarização maniqueísta entre o falso e o verdadeiro direito, resultando numa compreensão limitada do fenômeno jurídico como um todo, passando a idéia de que um saber crítico e alternativo constitui uma novidade histórica, quando na verdade, se analisarmos a história moderna das idéias jurídicas, veremos que em vários momentos houve movimentos teóricos e políticos de renovação da cultura jurídica - alternativos, portanto, ao saber estabelecido (jusnaturalismo, direito livre, realismo jurídico).
Mauro - A origem das teorias críticas remonta ao Marxismo, que foi a grande teoria crítica da modernidade. E a teoria crítica é o quê? É uma teoria “insatisfeita” com o que está posto. A teoria positivista, não. Ela é exatamente conformadora do que está posto e afirmadora da realidade do homem. A teoria crítica é uma reação à realidade. Se há motivos para se estar insatisfeito, então ela é crítica em relação a isso. E há esse movimento de teoria crítica do direito. Esse é o nome que eu acho correto. E nesse movimento você encontra: o Direito Achado na Rua, o chamado Direito Insurgente (do Rio de Janeiro), o próprio Direito Alternativo, o Direito Livre, etc., que são visões críticas. Por isso a expressão mais abrangente para designar as posturas insatisfeitas com o paradigma reinante na cultura jurídica moderna seria “Teoria Crítica do Direito”. E aí você encontra muita gente.
O Direito Achado na Rua é, portanto, uma Teoria Crítica do Direito. De base Marxista na origem, mas que tem influência da filosofia de Hegel, da nova hermenêutica de Gadamer, da racionalidade comunicativa de Habermas, do pensamento pós-moderno de Boaventura de Sousa Santos, de uma nova visão de sociedade, não conformada, dialética, ou seja, é um movimento de teoria crítica do Direito. É isso, os professores vinculados ao projeto Direito Achado na Rua que se desenvolveu e continua se desenvolvendo, produzem reflexões nessa linha, e têm como marco a obra do Professor Lyra Filho.
Você vê alguma possibilidade desse direito, da forma como está sendo colocado, ser incluído nessa reforma que se pretende fazer aí, de ser aproveitado de alguma maneira, de ser absorvido em parte, ou que se abra um espaço que isso aconteça?
Mauro - A premissa básica da teoria crítica é que, primeiro, a realidade histórica sobre a qual se constituiu o paradigma positivista está sofrendo profundas transformações, e que os mecanismos teóricos que a gente tem de conhecimento da realidade jurídica estão ultrapassados, estão em crise, precisando passar por uma nova mudança paradigmática. Depois, quando se fala em reforma, em uma legislação mais avançada, a gente precisa reconhecer que essa nova maneira de encarar o direito já está, de alguma forma, sendo influenciada pelas várias manifestações críticas, seja do Direito Achado na Rua, seja de outras linhas. Mas o que está perdendo espaço dentro da teoria jurídica é o próprio positivismo. O que está mudando é o paradigma. Qual o outro paradigma que virá, um paradigma argumentativo, hermenêutico, sociológico, não se sabe ainda. Então quando se fala em reforma do Judiciário, reforma dos Códigos, etc., não se trata de um paradigma científico. São reformas normativas, se preferirem, legislativas. O paradigma científico atua muito mais no momento de aplicação da norma, no momento de “conhecer” o direito. O juiz, para decidir uma questão, precisa conhecer o direito. Vimos durante as aulas de Introdução que o próprio Miguel Reale, que não é alternativista, dá subsídios para isso. Então, eu acho que a gente vai observar, e ver cada vez mais, o paradigma se transformar. E as fontes precisam se adaptar a isso.
E é aí que entra a Sociologia?
Mauro - Sim. Precisamos nos reportar ao estudo da sociologia, porque a sociologia é que é responsável por nos dar essa base empírica, fática. Mas uma sociologia, sem uma filosofia que interprete esses dados, esses fatos, é também um exercício que não leva a lugar nenhum. Uma nova teoria do direito, advertia Lyra Filho, deve resultar da associação dos sociólogos, da observação dos dados empíricos da experiência jurídica na sociedade, com os filósofos, com a reflexão ética, valorativa acerca desses dados.